Memórias a Guardar
Crónicas

Memórias a Guardar

“São as águas de março fechando o verão. É a promessa de vida no teu coração…” desliza na Rádio a melodia na voz de Elis Regina, enquanto arquivo mentalmente a memória de uma das últimas noites deste Verão quente e breve. A varanda sobre a cidade tráz-me a liberdade de observar o movimento lento a horas já matutinas, o aroma que ficou no ar das cozinhas dos bares e restaurantes, o filme da humidade que se cola à pele, como se esta cidade se situasse nos trópicos.
O sol do poente por volta das 8 já adivinha o fim deste Verão. Vida breve e intensa a do calor, por aqui. Tão diferente dos sítios das nossas origens, em que até finais de outubro ainda mergulhamos nas ondas das praias do sul, e às vezes com sorte, se novembro deixar, o sol de Inverno convida a que nos desnudamos.
O Verão é a estação do ano em que somos autênticos. A nudez brota-nos por dentro, trota-nos os braços e as pernas, chega-nos aos dedos das mãos e dos pés a rasgar o que o Inverno nos camuflou. Esquecemos as cores deprimentes, arrancamos do armário os azuis, os verdes, o amarelo, os vermelhos e laranjas que pedem arrojo e nos dispõem para ambientes que nos lembram o quanto é bom abrandar.
O Verão é a estação do ano da felicidade. As melhores memórias da vida adulta e concretamente da grande maioria das memórias de infância têm água, sol, areia, verde, vozes femininas a lembrar as horas das refeições, mimo, creme Nívea, óleo de côco. As minhas têm grilos em gaiolas, pirilampos, barcos de papel a atravessar rios e mares entre regos de terra e argila, e comportas de água abertas e fechadas pela enchada do meu avó. E piqueniques de chouriço de chocolate e limonada debaixo das árvores, noites de brisa sentada nos portais das casas que se abriam à noite, para refrescar. Sestas embaladas pelo tique-taque do relógio de parede da sala dos meus avós. Corridas de bicicleta; passeios matinais ou vespertinos de carroça, pelas veredas e encruzilhadas dos pinhais. Melância trincada diretamente no coração. E o cheiro fresco dos pinhões quando lhes despedaçávamos a casca.
Muitos compatriotas voltaram a “casa” esse Verão. E voltam todos os anos na ânsia do mesmo – das memórias perdidas no tempo; ou no encalço de construír memórias das origens no inconsciênte dos filhos e netos. Vale sempre a pena voltar, mas por vezes é um exercício frustrante que consume todas as energias. As pessoas das nossas memórias já não existem. E para os mais novos, é difícil em tão curto espaço de tempo criarem laços com as pessoas com quem não sentem afeição e com os sítios.
Outra realidade que o Português imigrante se acostumou a aceitar é o facto de nunca mais ser um Português “de lá”. Facilmente se habitou aos ares aziagos, ao desprezo da invejazinha nacional, a ser enganado nos preços, e para sempre será tratado como um “come on”. Mesmo assim, não há animosidade que lhe tire o prazer de atravessar o Atlântico, avistar a sua ilha, ou sobrevoar a Ponte sobre o Tejo, para concluír que Lisboa continua a mesma e deixar rolar a lágrima teimosa que queria mesmo evitar.
Depois o tempo corre depressa demais por lá, e quando estamos mesmo a disfrutar do mar, da família, do prazer da mesa farta, o calendário acorda-nos do nosso sonho de Verão e parece que foi ontem que apanhámos o avião e passámos a noite da véspera em branco, só a pensar em chegar aos braços que nos conhecem.
O regresso é difícil, mas a gente repete que a vida por aqui também é boa, para que os abraços não nos prendam a pontos de ficarmos de vez. E voltamos. É o fim do Verão, não com as chuvas de março, mas com as de setembro. É o fim do sal que nos cobre a pele, aclara os cabelos, do peixe que sabe a mar, da bica na esplanada e do jornal, do passeio pelo pomar. É o fim dos cheiros que nos povoam a memória que não queremos perder nunca – o cheiro do mercado pela manhã; do pão caseiro morno com manteiga; o tato dos dedos na areia quente; a música que nos desperta os sentidos quando subimos o Chiado; o pôr-do-sol do castelo – de qualquer um dos cerca de 500 existentes no nosso país, são todos soberbos!
É o Verão que se finda, como o pôr-do-sol já muito brando. É por isso que os bons momentos são de guardar em reservas. Quando voltarmos ao escuro dos dias, ao branco do ar das tempestades de neve, ao frio que nos enrija os ossos, devemos ficar gratos pelo sol de Verão que nos envelheceu, trouxe-nos os traços da vida bem vivida. E esses, não são de apagar nunca.
Os ritmos da mudança das estações trazem também transformação. Começar qualquer coisa de novo, mudar um hábito e criar outro; repensar um negócio; mudar um caminho que já não é mais um desafio; experimentar uma atividade nova; uma alimentação diferente; abrir a possibilidade de sair socialmente da própria zona de comforto; fazer uma mudança de estilo radical, tudo pode fazer diferença na transição de um tempo físico, mas também emocional.
Mudar é perigoso, porque se pode correr o risco de nos gostarmos tanto do resultado que nunca mais voltamos a ser os mesmos. Agora é o tempo, e para o ano já estamos noutro Verão para gerar novas memórias.
Da varanda, não perco um único pôr-do-sol. Dou por mim a cismar que o sol quando se ergue tão forte e vermelho lá no horizonte, que me enche os olhos de dourado e de um certo loiro os cabelos que ainda não inventaram nos salões, não será como os moribundos… Assim é o Verão que se finda – forte, repentino ao fim de um dia a anúnciar morte, vibrante como se fosse prolongar por mais tempo, e em segundos desvaneia-se e morre-nos nos braços.

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