Pássaro sem asas
Psicologia

Pássaro sem asas

“Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse.”

Vergílio Ferreira

 

A nossa mãe teve doze filhos, mas nós sempre nos conhecemos como “onze”. A Elizete, a segunda a nascer, morreu antes dos que depois foram chegando. Apenas eu tenho fugazes memórias do dia da sua partida, como se esse tivesse sido o único momento de uma vida curta que me marcou. Os irmãos que se seguiram ouviram falar dela muito vagamente, como um desgosto que se quisesse enterrado para sempre.

Com uma diferença de quatro anos entre mim e o meu irmão, é do tio Gabriel – irmão da minha mãe e quase da minha idade – que guardo memórias de brincadeiras de infância. Na verdade, nunca o recordei como tio, mas sempre como um irmão com quem partilhei as corridas de bicicleta entre os dois bairros na periferia da cidade onde vivíamos: eu, na Massangarala; ele, na Kamunda.
Foi muito breve esta nossa incursão pelo mundo da inocência. Uma tarde, fui colhida pela notícia da sua trágica morte num acidente de viação. O meu tio Gabriel foi a primeira perda de que guardo vivas e sentidas memórias. Depois dele, não me lembro de ter voltado a brincar. A responsabilidade de ajudar a criar os irmãos, que regularmente iam chegando, tomou conta do resto da minha infância até à adolescência, que interrompi casando-me cedo, para cedo cuidar dos dois filhos que tive.

Minha mãe rivalizava comigo na maternidade, e deu-me mais dois irmãos depois de eu já ter tido os meus filhos.

Tornámo-nos, assim, na família mais numerosa da nossa rua – onze irmãos!
– Uma equipa de futebol, Sr. Baptista! – dizia a vizinhança.

Sempre defendi, ufanamente, sermos onze, até ao dia em que decidiste iniciar esta contagem decrescente que nos atirou para a dezena. Mas eu ainda não me habituei, e hoje voltei a repetir para alguém: Somos onze!

A lei natural, inscrita na jurisprudência da vida, e que configura uma curva descendente em função da idade, teria ditado que eu, a mais velha, fosse a primeira a partir. Mas tu, zangado com a vida, subverteste esta ordem deixando-nos vazios de ti.

Uma vez, nas longas conversas que tivemos, afirmaste que “os irmãos são puros acasos biológicos”, tentando desta forma desvalorizar os laços de sangue. No fundo, o que querias dizer é que não escolhemos “ser irmãos de …”, e que podemos cultivar outros laços mais fortes que os da consanguinidade. É verdade que, a par dos irmãos de sangue, outros poderão existir resultado de escolhas afetivas mais importantes que os ditames da biologia. Mas as saudades que sinto não são ditadas por um qualquer acaso biológico, mas pela perda de um irmão a quem sempre chamei de Belito (Gabriel). És agora o segundo Gabriel que perco!

Nome de anjo que traz a boa nova, encarregado de abrir e iluminar caminhos, escolheste o teu sem nada dizer, deixando-me grávida de mágoas quando, em vez de vida, anunciaste morte. Há certos movimentos, diz-nos José Luís Peixoto, que só são possíveis depois do início da primavera. Tu, feito uma andorinha, iniciaste um voo maior do que a paisagem, em busca de um berço onde adormecer os conflitos interiores que não te deixavam sossegar.

Vergílio Ferreira, um dos autores que mais citavas, escreveu “Nas passagens de nível, havia um aviso de «pare, escute, olhe» com vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros.”

Mas tu não quiseste parar, escutar, olhar. Escolheste simplesmente ser pássaro … e, sem asas, voar!

 

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