A terapia com “eletrochoques” está de volta
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A terapia com “eletrochoques” está de volta

Ganhou má fama nos anos 1960 e 70. Era vista como um tratamento violento. Agora mais sofisticada, a eletroconvulsoterapia regressou aos hospitais, para casos de depressões graves.

O homem tinha um casamento péssimo. Ficou deprimido, a depressão agravou-se, quase deixou de conseguir trabalhar de manhã porque tinha dificuldade em sair de baixo dos cobertores. O tratamento com antidepressivos não estava a funcionar: cambaleava, falava pouco, raramente tomava banho. Finalmente, na primavera de 1973, foi internado num hospital psiquiátrico.

Este homem era Sherwin Nuland (1930-2014), cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Em 2004, subiu ao palco das conferências TED Talk para contar como foi a terapia electroconvulsiva (ECT) que o ajudou a superar esta fase negra e a recuperar: voltou a casar, teve mais filhos, ressuscitou a carreira como cirurgião e professor universitário, começou a escrever livros. Trinta anos depois, garantiu que teve uma vida maravilhosa graças esta terapia tão contestada nos anos 1970, quando lhe foi aplicada.

A eletroconvulsivoterapia (ECT) consiste na aplicação de uma corrente elétrica na cabeça do paciente que induz uma convulsão generalizada, autolimitada, e leva a alterações químicas cerebrais capazes de melhorar os sintomas de algumas doenças psiquiátricas. O tratamento, que foi usado pela primeira vez em 1938, ganhou má fama nos anos 60 e 70, em pleno movimento antipsiquiatria.

O filme “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, de 1975, ajudou a cristalizar a imagem dos “eletrochoques” como uma técnica violenta, brutal e desumana que perdura até aos dias de hoje. Os filmes e séries têm continuado desde então a representar a ECT recorrendo a elementos cénicos muito apelativos, mas totalmente desfasados da realidade, nomeadamente de pacientes deitados numa maca aos gritos e com violentas convulsões ou a fazerem o tratamento contra a sua vontade.

A ECT atual ainda está à espera da estreia no cinema, talvez por ser um processo bastante menos dramático: é necessário um consentimento informado e o paciente está a dormir. “A ECT hoje em dia é feita com recurso a anestesia geral e a relaxantes musculares potentes, que fazem com que a pessoa nada sinta e não haja contrações musculares bruscas”, esclarece Diogo Telles Correia, médico psiquiatra e psicoterapeuta, professor na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Apesar de a tecnologia ter evoluído muito nas últimas décadas e de se saber que é muito eficaz em casos de depressão grave e perturbação bipolar resistentes a outros tratamentos, a sua ação específica ainda não é totalmente conhecida. “Pensa-se que facilite a interação entre os vários neurónios e normalize o funcionamento dos neurotransmissores – as moléculas que servem de comunicação entre os neurónios”, defende Diogo Telles Correia.

No Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, hospital central especializado de psiquiatria e referência da região Norte, a ECT é praticada desde que a unidade foi criada, em 1962. “Contudo, tratava-se na altura de uma prática diferente da atual – com máquinas de doseamento por voltagem e estímulos de corrente alterna -, utilizada raramente e por psiquiatras mais interventivos, que foi caindo em desuso”, explica Jorge Mota, psiquiatra responsável pela Unidade de Electroconvulsivoterapia daquela unidade hospitalar.

Uma nova máquina foi adquirida em 2004, ano da criação da Unidade de ECT, e trata-se de um aparelho de última geração, utilizando tecnologia de impulsos ultrabreves que, de acordo com o médico, permite induzir a convulsão necessária com uma carga mínima, adaptada à sensibilidade de cada doente, otimizando a eficácia e reduzindo os riscos.

Os tratamentos nesta unidade têm vindo a aumentar: passaram de 323 a 37 utentes em 2006 para 1 537 tratamentos a 98 utentes em 2018, contando ultrapassar os 1 800 este ano e aumentar a capacidade da Unidade para eventualmente chegar aos 2 200 anuais.

Nem oito, nem oitenta

A ECT pode ser feita em internamento ou em ambulatório e na fase aguda da doença, geralmente, são realizadas sessões duas ou três vezes por semana, durante duas ou quatro semanas. Depois, podem ser feitas sessões de manutenção de forma mais espaçada. Por norma, o paciente não abandona a medicação habitual, mas a ECT pode permitir-lhe reduzi-la se estiver polimedicado.

“Existe uma regra mítica em psiquiatria: dois métodos de tratamento são sempre mais eficazes juntos do que qualquer um deles isolado. Está demonstrado que a ECT e a medicação, em conjunto, são mais eficazes a tratar doença aguda e a prevenir recaídas do que qualquer uma isoladamente”, enfatiza Jorge Mota.

De acordo com o responsável pela unidade de ECT do Magalhães Lemos, a taxa de sucesso anda na ordem dos 80%, mas lembra que tudo “depende da patologia, aproximando-se dos 90% em algumas doenças psicóticas ou depressivas mais graves”. Até porque “muitos utentes propostos para ECT podem estar a ser orientados por ausência de resposta ao tratamento sem terem patologia que indique a ECT, ou, pelo contrário, tarde demais para aproveitar o tratamento, não apresentando por isso melhoria, o que baixa artificialmente a taxa de sucesso”.

Também o psiquiatra Diogo Telles Correia aponta para taxas de sucesso da ECT na ordem dos 75/80%, embora lembre que outros tratamentos, nomeadamente os medicamentos, tenham taxas de sucesso também muito altas. Ou seja, este não é um método de primeira linha para a maioria dos casos.

“É importante resistir a que esta intervenção se torne numa ‘moda’ e se comece a utilizar em pacientes que podem responder a uma medicação bem escolhida por um psiquiatra experiente. Pode ser uma intervenção rentável, se feita num regime privado, devendo ter-se cautela com alguma publicidade enganosa para que se recorra a ela precocemente de mais”, alerta Diogo Telles Correia. Além disso, sendo um procedimento considerado seguro, tem riscos, “nomeadamente alterações da memória importantes, que poderão ser temporárias mas também, em alguns casos, permanentes”, lembra o médico.

As atuais diretrizes para uso da ECT – em particular do NICE (National Institute for Health and Care Excellence) – esclarecem que não deve ser utilizada por rotina ou como tratamento de primeira linha em situações de depressão moderada, mas apenas em situação em que não há resposta à terapêutica farmacológica.

As recomendações para considerar a ECT como tratamento de primeira linha focam-se sobretudo em casos de depressão severa com riscos para a vida, em que seja necessária uma resposta rápida, nomeadamente quando há ideação suicida ou situações em que o paciente não come nem bebe sozinho, por norma associadas a um estado de imobilidade de depressão severa chamado catatonia.

Estes são, de resto, os quadros em que a melhoria mais impressiona os médicos, sustenta Jorge Mota. “Os pacientes com catatonia aguda ficam arreativos e inexpressivos, sem falar, sem se mobilizarem nem se alimentarem sozinhos. Com a ECT a recuperação nestes quadros costuma ser mais rápida e, na semana seguinte aos primeiros tratamentos, aparecem deslocando-se já pelo próprio pé, falando abertamente com a equipa e mesmo sorrindo.”

Sofia Teixeira

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