Ser português num Portugal sem máscara...
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Ser português num Portugal sem máscara…

Após esta quarentena por causa deste vírus invisível, mas com consequências bem visíveis, o tempo vai sobrando para as tarefas adiadas sine die. Volto à escrita neste espaço no mês de junho, uma oportunidade para escrever sobre Portugal e o significado de ser português, nestes tempos de incerteza.

DR

Com este Portugal sem máscara pretendo partilhar com todos vós, o meu sentir da minha pátria, embora tenha nascido em França, como fruto da emigração. Como canta a Simone de Oliveira esta palavra saudade é uma palavra amarga e doce, sentida com mais intensidade longe do torrão pátrio. O nosso fado triste tangido e dedilhado numa guitarra portuguesa pela genialidade de Carlos Paredes, a banda sonora indicada para viver a portugalidade. O convívio à volta da mesa, um dos marcadores desse ADN de ser português, irremediavelmente posto em causa com esta pandemia.

Fornada Carlos Cruchinho

Este afastamento forçado e temporário, só mitigado via videoconferências no Zoom, no Skype, no Whatsapp e no Messenger. Este confinamento dentro de casa interpela-nos para reflexões inevitáveis, balanços de vida, o repensar das relações e das amizades. Valorizar os pequenos gestos, agora proibidos pelas normas sanitárias, sentir o outro com intensidade, deixar cair as máscaras da falsidade, olhar para os outros com olhos de ver, sendo solidário, mais um marcador genuíno do ADN de ser português de alma e coração. A realidade transformou-se radicalmente, o afastamento social tornou-se inevitável, a casa passou a ser o habitat natural de milhões de pessoas. A leitura como companhia nesta clausura forçada, permite alimentar o sonho de viajar com Júlio Verne à volta do mundo em oitenta livros.

Praia do Molhe Carlos Cruchinho

Impossibilitados da fruição das belezas únicas do nosso país, um passeio descansado por uma qualquer viela de norte a sul de Portugal, algo menosprezado noutros tempos, desejado sofregamente neste momento como um bálsamo milagroso, para combater o isolamento severo entre quatro paredes.

Calçada portuguesa em Ponta Delgada Carlos Cruchinho

Na única janela aberta para o mundo, as telas dos smartfones ou dos computadores, reconstruímos os laços desatados duma vida desconstruída. Acusamos o toque, as nossas fragilidades emergem sem dificuldade, obrigando-nos a ir à luta, sem contemplações surgem os desafios de uma nova organização económico-social, mudanças de sentido e de passeio. A coragem de afirmar outro rumo, um outro destino carregado de simplicidade. Pedra a pedra o espírito luso do desenrasca vai contornando os obstáculos do caminho sem hesitações ou temores, como na epopeia dos descobrimentos, com muita tenacidade e alguma ponderação tornamos comum o conhecimento do globo, acompanhados do nosso linguajar único, a língua dos poetas. Uma homenagem singela a Portugal, a Camões e às comunidades portuguesas na diáspora, uma coroa de flores silvestres neste jardim das tormentas, onde o magro sustento arrancado das inférteis corveias, obriga os filhos desta nação valente e imortal a vogar pelo mundo. Certa madrugada fria e ainda escura deixaram para trás o seu casulo, para uma metamorfose de vida em paragens longínquas voando nas asas do sonho duma borboleta, ora pousando em terra, ora pousando no mar. Esse espírito livre e aventureiro, jamais esquece o cheiro a sardinhas e a pimentos assados num simples fogareiro de ferro fundido. Os arraiais dos santos populares, os seus bailaricos animados com a sua música inconfundível e suas marchas populares a desfilar na avenida. Honrando o santo casamenteiro, S. António com o seu pão por Deus, o nosso S. João com a frase feita, S. João, S. João dá cá um balão.

Mértola Carlos Cruchinho

Numa releitura do livro 1984, uma das obras literárias incontornável de George Orwell revisitei este sentimento da ficção tornada realidade, a genialidade do autor descrevendo em 1949 uma realidade dos nossos dias. Cito uma passagem desse livro que poderia ter sido escrita num qualquer diário de quarentena na atualidade.

George Orwell Carlos Cruchinho

“A teletela estava a soltar um apito ensurdecedor, que continuou no mesmo tom durante uns trinta segundos. Eram sete e quinze, hora de se levantarem os empregados de escritório. Winston arrancou o corpo da cama – nu, porque um membro do Partido Externo só recebia três mil cupões de racionamento de roupas por ano, e as duas peças de um pijama exigiam seiscentos – apanhou uma camisola suja e um par de cuecas que colocara numa cadeira próxima. A Educação Física começaria dentro de três minutos.

– Dobrar e esticar os braços! – ordenou. – Acompanhai o meu ritmo, Um, dois, três, quatro! Um, dois três, quatro! Vamos, camaradas, um pouco de vida nisso!”.

Esta ginástica matinal leva-me até aos anos quarenta do século passado, mais propriamente ao filme português O Pátio das Cantigas realizado por Francisco Ribeiro, onde foi parodiada pelos atores Vasco Santana e Ribeirinho, a ginástica sueca: www.youtube.com/watch?v=j5KtGoOIWJc .

Termino este apontamento escrito em confinamento, entre a preparação de uma aula de História e Geografia de Portugal e uma aula de Expressão Dramática para o ensino à distância, neste sexagésimo sexto dia de teletrabalho. Afirmo com orgulho como Fernando Pessoa a minha pátria é a língua portuguesa.

Carlos Cruchinho

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