Maria A Penitência de um nome... - por Maria João Rafael
Crónicas

Maria A Penitência de um nome… – por Maria João Rafael

março 2016Maria Miguel acorda todos os dias às quatro e meia da manhã. É viúva e como não lhe bastasse, perdeu todos os seus cinco filhos em tragédias distintas. Quando os filhos perdem a mãe ficam orfãos de mãe; quando a mãe perde os filhos, a dor deve ser tal que a nossa língua foi incapaz de arranjar um nome que defina esse estado de alma… Maria Miguel poderia ser a Anna Fierling, a Mãe Coragem da obra de Brecht levada aos palcos do mundo, e não passar de ficção, porventura não fosse de S. Miguel, Açores, e não fosse realidade. Antes de sair, deixa o almoço pronto para a neta que está a criar desde os sete anos. Este ano entrou para a College, o que significa custos acrescidos. O Rocket leva-a até ao outro lado da cidade, pela noite. Nele, cruza-se com Maria Eugénia, uma minhota a roçar a mesma idade. Olham-se sem trocar palavras, reconhecem-se sem nunca se terem conhecido antes, subentendem-se companheiras de um mesmo fado. Quarenta minutos depois, sai da ainda noite para se afundar numa cave onde funciona uma fábrica ilegal. Dalí sairá sem ver a luz do dia. Uma vida feita de noites; pensa, no único momento que é seu antes de se deitar, enquanto beberica um Gorreana e desfolha uma revista comprada no café português do costume.
Maria nasceu Pátria em reconhecimento à chegada dos seus pais a Angola naquele paquete, na viagem inaugural em 1948. Filha de um fazendeiro de cana do açúcar levado precocemente por um ataque cardiaco e de uma mãe que cortou os próprios pulsos numa banheira anos depois; Maria Pátria fez-se mulher prematuramente. A guerra civil obrigou-a a combater pelo MPLA contra a UNITA. Já médica, aquartelada no mato, testemunhou os horrores da guerra. Após ter concertado tanta gente esventrada, especializou-se em colonproctologia. Um dia em 1983, levou consigo apenas o essencial para um congresso de dias em Lisboa e nunca mais voltou a Angola. Por lá, deixou um casamento mestiço e metade de si. Desde então, não acredita no amor nem no valor do dinheiro. Chegou a Toronto há 30 anos. É investigadora num dos principais hospitais da cidade. Madruga à chegada e deixa-se arrastar pela noite, até achar que não pode ficar mais. Gosta da sua solidão e o seu comportamento tem muito em comum com o seu gato; pelo menos é o que lhe diz Maria das Dores.
Maria Eugénia começou a trabalhar na extinta fábrica de Fiacção e Tecidos do Rio Vizela, aos doze anos levada pela mão da mãe. Seria a quarta geração da familia a fazê-lo. Ficou lá por nove anos; até que aconteceu uma coisa extraordinária – estava para casar, mas descobriu que o noivo lhe fugia à verdade quando lhe falava dos seus bens e riquezas, e no dia do casamento abandonou-o no altar. Deixo-o a ele e à fábrica! No dia seguinte foi para França. Trabalhou em Paris, como doméstica, mas não gostou da cidade. Resolveu mudar-se para a Normandia, onde trabalhou numa quinta. Arranjou namorado novo por lá, pouco tempo depois desgostou-se dele e voltou à fábrica. Ainda não tinha aquecido o lugar, arranjou namoro com um rapaz da terra que se tinha estabelecido no Canadá. Chegou com ele, já casada. Por cá, alguns filhos depois, com o marido morto na construção, decidiu mudar de rumo. Abriu um pequeno lugar de esquina, de frutas e legumes e embora o negócio já não seja o que era antes, vai dando para viver. Formou dois dos três filhos já sozinha, e a sua única mágoa é o mais novo ter seguido as lides do pai. Pouco a pouco, foi-se desinteressando de ir à terra; o pessoal de lá pensa que a vida de imigrante é a mesma que de gente rica. É só amealhar sem sacrifícios. Não contam as noites mal dormidas; nem as invernias; as aflições sozinha; os malabarismos para esticar o dinheiro, o basta, a solidão num país frio. Não, lá na terra não entendem nada. Quando lá vai, pede o Padre, a Freguesia, a pequena do café, porque o negócio está fraco… Pedem até ela ir dando, pagando-se de afectos que não existem. Por isso, quando ela encontra na madrugada o olhar de Maria Miguel, cansado dos mesmos caminhos, reconhece nela o próprio triunfo.
Maria das Dores herdou no nome a ira do pai por ter morto a mãe, para nascer. Começar a vida a carregar um castigo não pode acabar bem. A vida sempre lhe foi penosa. Conheceu um rapaz na escola, em Vila Viçosa, nascido no Canadá. Casaram, tiveram um filho e o marido morreu num acidente agrícola, numa Sexta-feira Santa. Quando soube que o filho podia ser legalizado no Canadá, veio ter com os sogros e por cá ficou. Aprimorou-se no trabalho que nunca lhe faltou. Governa a casa de Maria Pátria como se fosse sua e passaram a ser amigas íntimas. Partilha a vida com dois part-times e um namorado que lhe consome a energia para vivê-la. A vida é rotineira, até no amor; ou no que se inventa para não descarrilar na ausência dele. E vai-se aguentado – um berro; uma bofetada; uma faca atirada; um garfo espetado na mão; uma queimadura de um cigarro que se extingue no braço. Vai-se ocultando como se pode. Passa a ser um hábito como ir ao supermercado; sem dia certo, quando calha. Daqui a uns anos, ela ainda não sabe, mas ao menos esta Maria salva-se; mantando para não ser morta.
Aqui somos todas Marias. Ninguém nos conhece a história por detrás do nosso segundo nome. Aqui desconhecem que temos um segundo nome; perguntam-nos apenas pelo último, como se fosse esse que nos revelasse a essência de mulheres.
Aqui escudamos todas o nome de Nª Senhora como se por ironia do destino tivessemos de carregar o peso de uma santa. Maria, nome de mãe, nome de raínha, mulher – sempre. Marias seremos, cavalgando vendavais, às vezes rodopiando tornados; tropeçando sem cair; dobrando sem quebrar. Fazemos filhos, amamentamos, criamos – e às vezes os das outras; trabalhamos; amamos de todas as formas que estão ao alcance da nossa condição – absolutamente todas.
Marias permanecemos, na empatia solidária de cada vez que nos encontrarmos com outra Maria, mesmo que seja por instantes. Cada uma de um sítio diferente, mas todas descendentes de Viriato. Cada uma de nós cosendo um retalho insubsitituível a esta manta em que ficarão impregnadas todas as nossas histórias e penitências.
As Marias têm acopladas a elas um nome de pai ou marido, como se fossemos sua propriedade. O que não deixa de ser singular, é que temos a vida do resto do mundo nas nossas mãos.

março 2016

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