O último poeta
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O último poeta

Deviam pôr a bandeira a meia haste sempre que morre um poeta; a melancolia dos que lhe beberam a seiva, chega a ser lume, quando um poeta morre.

A madrugada passada, sucedeu percorrer-lhe os poemas todos que fui encontrando, e fui ficando presa aos limos dos dedos das suas palavras nesse apego, fui mergulhando em apneia no mar dos sentidos do Poeta e fui-me aguentado cada vez mais tempo debaixo de àgua, até sentir a raia da tontura que me levou à tona, e nisto, já era manhã e o meu apetite pelos seus poemas já se havia convertido em ganância.

O poeta Manuel Cintra
O poeta Manuel Cintra em Lisboa pela lente do fotógrafo Vitorino Coragem Créditos © Vitorino Coragem

 

Tudo o que sei do Poeta, é que era generoso. O Poeta escreveu o seu último poema “Efeitos do Calor”, a 29 de maio. E já não terá entrado no junho. O seu nome era Manuel Cintra. Dizem que foi imensas coisas para quem teve o prazer de privar com ele. Os amigos dizem muita coisa do Poeta. E eu, que não percebo nada de pedras preciosas, acho que ele era topázio. Nobre, com conexão aos planos de luz; que se interligava com a sabedoria dos anjos; que em dias de trovoada o seu azul devia ser mais intenso. Mas isto sou eu a dizer, que nada sei. Com muita pena minha, nunca me cruzei na rua com um vendedor de poemas de maleta na mão; nem o ouvi cantar Brel em bares, nem o vi despir-se em saraus líricos. Eu, que devo ser a única mulher que conheço que não gosta de flores, adoraría ter sido surpreendida pelas suas rosas; que teria secado dentro de um livro seu. Tenho de me capacitar de que nunca lhe passarei os dedos pelos cabelos azuis; nem irei escutá-lo a horas inusitadas. Dizem que era uma inteligência séria; que era um bruto; ora um encanto; que vivia na liberdade crua reservada apenas aos poetas; que era em tudo excessivo; que vivia amores proibidos; que escrevia poesia à Filipa. A cadela. Que tinha uma maneira perigosa de estar na vida. Que amava cães e gatos a quem dava nomes de mulheres. Que gostava de ouvir e de partilhar Boris Vian, Dick Annegarn e Cohen. Um Poeta no rasto do cometa.

O Poeta que levou 36 anos a publicar o seu primeiro romance “Receber a Poeira”, após ter sido rejeitado por cinco editoras, por estar fora de moda – como se a poesia não fosse eterna! – e a quem a Ministra da Cultura, apelidou de “voluntariamente marginal”; dizem os amigos, que tudo sorveu com paixão. Na verdade, as vidas arrumadas com a monotonia da gaveta das meias, não oferecem erro de margem. E a vida ao limite, dá cabo do coração. Viver com ardor e cautela, com que diabos, não é compatível para um poeta!

E de cada vez que lhe desato um poema, o Poeta, a quem vi chamarem o “último poeta”, volta a andar por aqui, fátuo como uma borboleta, atraído pela chama e a queimar as asas, outra vez; sempre que cai para voltar ainda mais exuberante, em metaforse.

Para mim, que só o descobri no último mês de vida, era homem-pássaro. Porque do nada, lhe nasciam asas e embora parecesse que caminhava pelas ruas da cidade secreta, ele afinal voava.

Fica a despedida à Manuel Cintra, o Poeta:

“Deixem-se de merdas.
Já se sabe há muito que a morte de um poeta
é um dano irreparável. (…)
Resta-me a loucura.
esborrachada no que era para ser duna
e se fez só deserto.
Morreste.
E sei-te longe, mas estás perto.”

E estás-me cada vez mais perto, Poeta.

Maria João Rafael

Imagem retirada do Facebook de Manuel Cintra – Créditos © Vitorino Coragem

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