Pedro e Inês...
Crónicas

Pedro e Inês…

 

fevereiro2016

O Super, a Florista, a Papelaria, os Correios. Tudo pintalgado de vermelho, cartões lamechas, corações no ar a fustigar-lhe os olhos e a violentar-lhe o espaço entre a razão e a ditadura do dia dos Namorados. O marido deixara-a por outra, mesmo às vésperas do malfadado dia, faz um ano. O maior amigo dos últimos 28 anos, o único amante que passou pelo seu corpo, o pai do filho que abdicou de ver nascer, porque ele não a queria ocupada com mais ninguém.
Ainda sem divórcio à vista, já um novo Fevereiro vem chegando, e ela de ferida dilacerada, com as lágrimas feitas de sal a cairem-lhe lá dentro, bem no âmago do poço. Modernices! – pensa, ao pousar a mão esquerda sobre uma revista com sugestões para o dia mais romântico do ano; ainda de dedo ocupado por uma aliança que já se quebrou e de um ciclo de rotinas que já não existem. Modernices! – como o maldito Facebook que só lhe trouxe inferno e lhe levou a paz. Aquele nome a explodir-lhe as têmporas – Ana Maria Corte-Real – nobreza nojenta e bem casada, com um figurão, jurista, presença assídua dos programas da TV, das manhãs…
Ele telefona-lhe por vezes, para lhe pedir livros, documentos, roupa que lhe faz falta, albuns de fotografias de viagens que fizeram juntos. Liga-lhe a horas seguras, em que sabe de antemão que ela não desconversa, porque a sabe aprisionada no metro apinhado de gente. Ao dia combinado, ele lá aparece à ombreira da porta, como se fosse um estranho. Quando lhe diz que não tenha ilusões e a porta se fecha, sente-se acometida, como se para além de lhe assaltarem a casa, lhe roubassem também a alma. O corpo esvaí-se por alí fora, pelo tapete, e arrasta-se em lágrimas até à janela para ainda o ver, agora ao longe – ainda lhe guarda o cheiro, a maresia dos cabelos de um dia de praia, a covinha no queixo que sempre mexeu com ela, os mesmos pés apressado que chegavam sem avisar, para roubar beijos e tardes de cama.
O dia dos Namorados caíu bem entre os adolescentes, o comercio rejubila, só isso. Entre eles, que eram eternos namorados, passava em branco. Chega-lhe à memória um longínquo fim-de-semana em Amesterdão, onde se passeavam por entre os jardins labirínticos de Keukenhof, e ele lhe ofereceu um punhado de túlipas, pela ocasião, por ser dia dos namorados. Ela riu e disse-lhe que nunca antes ele lhe parecera tão piroso! Visto à distância de uns 5 anos, ainda lhe parece mais piroso.
Na cama, ainda dorme do seu lado, sem invadir o espaço vazio do corpo que dorme agora com outra. A perda de alguém que escolhe partir; e no entanto, caminha nas mesmas ruas, continua a beber a bica no mesmo café, povoa-lhe o caminho, vive ainda dentro dela, é devastadora.
As noites são imensas, o diabo anda à solta e há fantasmas que ainda não se finaram. Revolve-se nos lençóis, acende a luz, recomeça um livro pela terceira vez. Desliga o interruptor. Assenta os pés gelados, porque agora estão sempre gelados, na carpete do quarto. O dia começa quando ainda não acabou.
Deambula até à cozinha. Passa pela consola da entrada; há duas cartas com o nome dele, como se a ironia da burocracia pudesse tornar o fardo mais carregado. Abre a janela, falta-lhe o ar. Falta-lhe a força nas pernas. Senta-se no chão da sala, com as pernas nuas. Ao acaso, abre um album de fotografias, desfolha-o. Tudo lhe parece já tão distante. Fotos no casamento de alguém, que já está também noutras núpcias. Todos encarcerados dentro das páginas. Só as fotografias têm o poder de prender as pessoas para a posterioridade. Olhares que já não existem. Olhou-se ao espelho por cima da lareira, levou a mão à cara e deu-se conta que os seus olhos tinham envelhecido duramente no espaço de um ano. Nessa noite, mais uma branco, fez um pacto com a sua maturidade. Seria a última noite que permitiria que a sua baixa auto-estima se pudesse passear como se uma aparição.
Na manhã seguinte, em vez que levar o mesmo itenerário, decidiu fazer o caminho a pé até à redacção. Comprou um par de luvas, ao passar pela Ulisses, à hora do almoço. Vermelhas! No caminho de regresso a casa, passou pela advogada com instruções para que iniciasse o processo de divórcio.
Como tinha dado carta de alforria à baixa auto-estima, sentiu algum receio que ao regressar a casa, a encontrasse no tapete da entrada, na poltrona da sala, numa qualquer notícia de abertura do notíciario, num dos ansiolíticos ainda em liberdade no armário de casa-de-banho… Passou por um desses cabeleireiros novos em bairro velho, entrou. Sentiu-se segura lá dentro. Precisava de voltar a ser nova – não mais jovem; apenas outra mulher – pois se era assim que iria ser, precisava de ver como era essa nova mulher.
Quando a rapariga de cabelos azeviche a abordou, sorriu sem saber o que lhe dizer.
– O que pode fazer por mim? – questiona-a a experimenta-la, para se certificar até onde pode ir.
– Pretende pintar, mudar o corte? Tem alguma ideia do que deseja mudar? – acercou-se a rapariga, por detrás dela, olhando-a através do espelho, com as mãos apoiadas nos seus ombros.
– Tudo. Quero mudar tudo. Sabe o que quero mesmo? Que me transforme no que os seus olhos me vêem.
Mal proferiu estas palavras, arrependeu-se logo. Cuidado com o que pedes! – pensou. Afinal, a miúda não devia ter mais de 25 anos, metade da idade dela. Só queria sentir-se outra.
Quando de lá saíu, era de facto outra. Os cabelos tinham ganho ondas rebeldes, tão rebeldes como a tempestade que a atravessava. Mesmo assim, não estava capaz de voltar já para casa, fechar-se, esconder-se. Por muito tempo, não sentira uma vontade tão gritante de se revelar, exibir.
Calcorreou a Baixa a pé, comeu sushi junto à estação do metro, mesmo em frente ao cabeleireiro, visitou galerias, alfarrabistas. Entrou em sítios diferentes só para saber como seria. A noite adiantou-se-lhe rapidamente. Sentia que já tinha passado há muito das horas decentes e seguras. O que quer que isso fosse, ninguém a esperava em casa… Foi descendo a Rua do Alecrim a caminho do Cais do Sodré,
A chuva trazida pela súbita ventania, fê-la entrar num desses bares que não se aventuraria nunca a entrar por iniciativa própria. Pensão Amor. Se era! Os tons vermelhos e a decoração Deco, os reposteiros de veludo azul celeste, pinturas no tecto de deuses eróticos, estatuetas de mulheres semi-nuas – como se fora um bordel do século XIX ! As mesas estavam povoadas dessa geração de candidatos a artistas, sentados em cadeirões de veludo verde. Homens mais velhos, aqui e alí, ao balcão. Pediu um scotch & soda – não estava habituada a beber; depois riu-se sozinha, quando caíu nela – Scotch & Soda, a marca de roupa, como se tivesse agora idade para se vestir como uma teenager!
Ainda sorria, quando ele a interrompeu.
– Dá-me licença que me sente? – Para isto é que não se tinha preparado. Não fosse a chuva, não teria entrado. Humm… Interessante, pensou. Contudo, giro. Acho que já vi esta cara em qualquer lado… mas onde?
Ele acomodou-se. À medida que a conversa ía desfiando, ele acomodou-se a ela, ao rosto dela, como se fosse lume. Ela muito vaga, escutava-o. Um homem mais novo, directo, educado; contudo, a gravata denunciava-o fora do seu ambiente. Um serão simpático, ideal para quem está só há tanto tempo.
Já a madrugada começara, ele pagou as bebidas. Despediram-se com um até à próxima. Há saída, ele quis-lhe saber o nome.
– Inês. E o seu?
– Pedro – disse-lhe, entregando-lhe um cartão profissional.
– Pedro Corte-Real ; repetiu ela baixinho, com os olhos no cartão. Você é o…
Ele riu complacente; – Sim, o tal. O que vai à televisão.
Inês olhou bem nos olhos escuros de Pedro, ofereceu-lhe o braço.
– Sabe Pedro, a noite ficou fria de repente. E está mesmo apetecível estar à lareira. Venha, conheço o sítio ideal para nos aquermos.
Recomeçara a chover.

“Pedro e Inês,
seguiram pela noite fora,
sem pressa para se perderem.”

Não foram lenda; nem ela não chegou a raínha. A vida encetou novas rotinas; o tempo – mater e mestre, comprovou que a história é cíclica. Com os anos, Inês metamorfoseou-se tantas vezes, que se transformou num camaleão.fevereiro2016

 

 

Redes Sociais - Comentários

Botão Voltar ao Topo