Gilberto Fernandes
Entrevistas

Gilberto Fernandes

Gilberto Fernandes é o filho mais novo de Amândio Manuel Fernandes de Oliveira e de Maria Elsa Lopes de Oliveira. Nasceu na zona de Alvalade, em Lisboa e viveu em Sacavém e em Santa Iria de Azoia, ambas localidades do concelho de Loures. Apesar de ter vivido sempre na cidade, considera que foi um rapaz do campo, da cidade e do mar.

O 25 de Abril teve impacto na sua vida pessoal e familiar, considerando que a revolução de 1974 abriu portas e criou oportunidades antes inexistentes, como por exemplo, o acesso ao ensino público.

Em 2003 casa com Nancy Oliveira, com quem tem 2 filhos, Simão e Vasco Oliveira, de 4 e 2 anos respetivamente.
Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) em 2004. Nesse mesmo ano emigra para o Canadá. Benfiquista de coração, trocou o futebol pelo basquetebol desde que chegou ao Canadá, sendo hoje fã dos Toronto Raptors.

Em 2008 tirou o Master of Arts, History/ Ethnic, Migration, and Pluralism Studies, na Universidade de Toronto. Ainda em 2008, com Susana Miranda funda o Portuguese Canadian History Project. Um projeto que juntou 10 coleções de material histórico relacionado com portugueses na América do Norte, a segunda maior coleção de documentos sobre imigrantes portugueses e que se encontra na Clara Thomas Archives and Special Collections, da Universidade de York. Foi na Universidade de York que tirou o Ph.D. em História, em 2014 e em 2016, foi co-fundador do Toronto Workers History Project.

Em 2018, lançou um documentário patrocinado pela Local183, intitulado City Builders: A History of Immigrant Construction Workers in Postwar Toronto e que será publicado em livro ainda em 2020. Entre 2018 e 2019 foi Curador e Investigador no Myseum of Toronto.

O seu primeiro livro, que foi lançado no início de 2020 e tem como título: This Pilgrim Nation: The Making of the Portuguese Diaspora in Postwar North America , é uma adaptação da sua tese de doutoramento para uma leitura mais acessível.

Atualmente, é Professor visitante do Departamento de História da Universidade, onde tirou o seu Ph.D e está associado ao Global Labour Research Centre, centro de investigação que faz parte da Universidade de York. Em 2019 deu aulas de História de Toronto na Universidade de York e no ano letivo que inícia no Outono vai dar aulas de História Pública/Aplicada. Em fase inicial, o novo projeto com o patrocínio da Local 793, intitulado Laborem Ex Machina – The History of the Operating Engineers and Heavy Machinery in Canada´s Construction Industry estará concluido em 2022.

Gilberto Fernandes - Revista Ama - toronto
Nicole Glassman

 

Revista Amar: Quem é Gilberto Fernandes?
Gilberto Fernandes: Sou filho de Amândio e de Maria Elsa. O meu pai é do Minho e a minha mãe da Beira Alta. Conheceram-se perto de Tondela, distrito de Viseu numa altura em que o meu pai, derivado ao trabalho, estava a trabalhar naquela zona.
Nasci perto de Alvalade, Lisboa… mas sou benfiquista! Contudo, desde que cheguei ao Canadá troquei o futebol pelo basquete e sou mais fã dos Raptors do que do Benfica! Gosto muito de futebol e joguei futebol organizado nos infantis e nos juniores da minha localidade e hoje ainda gosto muito de jogar, mais do que de ver… mas agora o meu desporto preferido é basquete. Vivi 12 anos em Sacavém e depois mudámos para Santa Iria de Azoia, concelho de Loures, onde fiquei até aos meus 24 anos. Frequentei a Escola Segundaria de Alverca e fiz a minha licenciatura em História Moderna e Contemporânea no ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa). O meu curso marcou-me profundamente não só intelectualmente como, tanto ou mais, na formação e experiências da vida, pelas pessoas que conheci (…) e aprendi imenso sobre tudo e mais alguma coisa.
Foi durante este período da minha vida que fiz as principais ou a maior parte das amizades que mantenho até hoje, em Portugal. Também é durante o curso que comecei a namorar a Nancy, que viria a ser a minha esposa, que é luso-canadiana e no meu último ano fui ao Canadá, para me encontrar com ela e casámos no City Hall de Toronto, em 2003. Regressei a Portugal para terminar o curso e depois regressar ao Canadá em 2004… eu sou o chamado “emigrante romântico”.
Fui a primeira pessoa da minha família que depois que saiu da Universidade seguiu com os estudos.
Na minha experiência pessoal e familiar, houve… digamos que uma história de mobilidade geográfica e social acentuada, mas que não é única e que até é bastante comum entre as famílias portuguesas depois do 25 de Abril. Quando falo da mobilização social, refiro-me ao facto da minha mãe ter a quarta classe com um filho com o doutoramento e professor universitário. Ora essa mobilidade, tanto geográfica como social, está profundamente relacionada com a revolução de 1974 e com o que veio depois disso… e a minha vida também está muito marcada com isso, não diretamente, mas diretamente falo do meu pai, veterano da guerra colonial com 2 anos de Guiné, que por acaso estava no Largo do Carmo, que como outros estava pendurado numas das árvores, quando o Estado Novo caiu e o Caetano entrou para dentro da Chaimite. O 25 de Abril diretamente teve algum impacto na minha vida familiar, mas digo que indiretamente que o impacto que teve na minha vida e da minha família, talvez como na maioria das famílias, foi o aparecer de oportunidades que não existiam até então para mim, para os meus e pessoas que vinham do mesmo contexto social, cultural e geográfico, como, por exemplo, o acesso ao ensino público entre outras coisas.

RA: No geral, o que destacaria da História de Portugal?
GF: Para mim, o meu interesse pessoal e profissional é realmente a história da imigração, tanto que é a este tema que tenho dedicado a minha investigação desde do meu doutoramento. Destaco este, não só porque é o meu “niche” digamos assim, embora a ser um “niche” é um “niche” muito grande, mas porque realmente um fenómeno económico, social, cultural, político etc. da história portuguesa, que é praticamente uma constante desde do século XIX (…) por vários motivos. A corte portuguesa, inclusivamente, durante as invasões napoleónicas esteve imigrada no Rio de janeiro, no Brasil fazendo desta cidade a capital de Portugal durante esse período. A imigração é um fenómeno que atravessa toda sociedade portuguesa, desde das classes mais altas às mais baixas, claro que com mais incidência nas classes mais baixas. Este fenómeno é conhecido e cada vez mais estudado, mas que durante muito tempo na nossa história foi negligenciado, estigmatizado e estereotipado por estar associado aos problemas estruturais e económicos. Estes estereótipos do que é supostamente o imigrante portuguese estão bem patentes e referenciados na literatura portuguesa.

RA: Se tivesse que definir o imigrante português, como o descreveria?
GF: Por norma, tento evitar dar uma resposta… porque tende a “essencialisar” grupos de pessoas. Aliás, uma das coisas que comecei a fazer quando iniciei a minha investigação sobre os portugueses no Canadá foi realmente mostrar que é uma comunidade étnica, como são todas, altamente heterogénea, ou seja, muito diversa e que vai contra uma tese multi-culturista que tende a ver as comunidades étnicas como blocos monolíticos que têm os seu respetivos líderes, normalmente líderes autoproclamados e também tendem a falar por um segmento específico da comunidade, então o ponto de vista multi-pluralista é clássico, tende a ter uma visão do topo para baixo, em que cada comunidade étnica é um azulejo, porém as comunidades étnicas são altamente diversas e fragmentadas e têm outras identidades e solidariedade que competem com a identidade étnica… por exemplo, uma pessoa é portuguesa, mas também é trabalhadora (…).
Essas solidariedades por vezes potenciam-se uma a outra ou por vezes fragmentam-se, então os poucos estudos que tinham sido feitos nos anos 70 e que li quando comecei a estudar a comunidade portuguesa, tendiam a “essencialisar” a comunidade, tendiam a ver a comunidade nesse bloco muito monolítico e, portanto eu tenho alguma resistência em falar das características que definem os portugueses por causa disso. O que posso dizer é que há coisas comuns à identidade portuguesa, e claro que nessa identidade cabem muitas interpretações. Digamos que a perspetiva canadiana/anglófona que se tem dos portugueses é que são pessoas religiosas – pegando num exemplo: é verdade que muitos o são, mas ao mesmo tempo há na História de Portugal e até da comunidade portuguesa uma forte componente anticlericalismo, aliás na História de Portugal política contemporânea há uma luta entre os religiosos e os anticlericais – entre os republicanos e o Estado Novo e entre os comunistas e o Estado Novo. Ou seja, é verdade que os portugueses são muito religiosos, da mesma maneira que também é verdade que são muito anti religião – depende de que região de Portugal estamos a falar. Derivado ao contexto económico, social, político e religioso os Açores é muito diferente do Alentejo e mais semelhante com o Norte do continente, e mesmo assim existem diferenças bastante acentuadas.
Normalmente o que acaba por unir os grupos étnicos digamos assim, são fatores externos… eu próprio, por exemplo, sou português, nasci e fui criado em Portugal, formei-me em Portugal, reconheço-me como português inclusive a minha autocrítica e as minhas noções que ofereci provêm da minha educação portuguesa e do meu cosmopolitismo, mas a minha portugalidade… ou seja, só me comecei a identificar mais como português no Canadá, porque até aí era um dado garantido e não era “interessante”. Fui-me tornando mais português no Canadá, como também sul-europeu. Em Portugal nunca me vi como um sul-europeu, e penso que a maioria dos portugueses em Portugal se consideram europeus ocidentais, pela nossa História estar próxima com ao Reino Unido e à França e, claro, à Espanha nem sem fala do que está da Itália e da Grécia. No Canadá ou no mundo anglófono os portugueses, italianos e os gregos normalmente são postos no mesmo saco. (…) A minha identidade racial nunca foi posta em causa em Portugal, sempre me considerei branco – é daquelas coisas que nunca me autoidentifiquei, também porque era um dado garantido – mas, quando chego ao Canadá, em certos momentos identificaram-me como não branco, o que percebo perfeitamente porque as identidades raciais são contextuais que se alteram de contexto em contexto e querem dizer coisas diferentes em contextos e momentos diferentes. Resumindo, o ser “português” é uma coisa perfeitamente contextual, o português de Portugal é relativamente diferente do português do Canadá (…).

RA: Ser português, hoje em dia, é motivo de orgulho?
GF: O orgulho só deveria ser usado no contexto defensivo… o orgulho em si é um sentimento, que acho que deveria ser, defensivo. Uma pessoa orgulhosa ou o orgulho não é um bom sentimento, eu acho que uma pessoa deve estar aberta à autocrítica e outras perspetivas, etc. Mas tenho orgulho em dizer que sou português se alguém me tentar embaraçar por ser português – hoje em dia isso já nem acontece.
Contudo, quem viveu ou nasceu no Canadá até aos anos 80, ter uma identidade portuguesa não era propriamente uma coisa que beneficiasse, que abrisse portas ou trouxesse vantagens, pelo contrário, havia muitos estereótipos muito negativos, então muitos portugueses, principalmente os jovens, escondiam a identidade… o que hoje não acontece!!! Hoje é ao contrário, pois temos o fenómeno Cristiano Ronaldo e Portugal está na moda… hoje ser português é uma mais valia. Eu sou português, porque eu sei que o sou e para mim não é uma questão controversa… sou português como sou canadiano, apesar que parte da minha identidade que provem do Canadá é obviamente diferente da parte da minha identidade que provem de Portugal. No Canadá, a minha identidade é mais cívica e profissional no quotidiano, mas os meus pontos de vista ditos culturais, políticos e ideológicos provêm da minha formação em Portugal e da História de Portugal. Acho importantíssimo que quem tenha a possibilidade e oportunidade de passar uma segunda linguagem e o acesso a outro universo cultural aos seus filhos, encorajo-o vivamente que o façam. É uma riqueza enormíssima que é quase criminoso não passar isso aos seus descendentes e um fechar portas a um universo inteiro. Saber português, significa ter acesso a um mundo de literatura, música, etc… é ter acesso ao mundo lusófono.

 

RA: Acha que se fazem coisas muito boas em Portugal, como, por exemplo, na cultura, ciência e tecnologia, que não têm o devido reconhecimento internacional?
GF: Não é só pelo simples acaso de eu ser português, mas eu gosto muito da cultura portuguesa e do que se faz em Portugal a nível de literatura, música, cinema – o cinema português é excelente! Aliás, sempre que vou a Portugal vou-me informando. A música que se faz em Portugal, música moderna e não só… por exemplo, pegamos no Hip-Hop, um dos géneros mais populares do planeta, eu acho que o Hip-Hop português dá voltas de avanço ao Hip-Hop norte-americano.
Em Portugal fazem-se coisas muito boas, a literatura então nem se fala. Portugal tornou-se quase um Silicon Valley da Europa, com muita gente criativa, aliás o que acaba por acontecer é o seguinte – isto vai ser quase uma auto-congratulação à minha geração (risos) – Portugal é um país que tem gerações que têm memória viva e recente de um país onde havia poucos recursos e as pessoas que se quisessem alguma coisa tinham que fazê-las por elas mesmas e é comum a muitos de nós, que vieram do meio rural, e é um país onde há também uma cultura de artesanato muito grande e o artesanato é, digamos, uma cultura de criatividade – e a criatividade e a arte não é uma coisa das elites… qualquer camponês ou pescador é quase um poeta hiponense. Isso nota-se muito no design do nosso artesanato, que é riquíssimo.
As gerações, da idade produtiva, herdaram o que se diz em inglês “do it yourself” e juntaram a isso a educação formal, o treino moderno e qualificado da sociedade moderna do após 25 de Abril e do ensino público, sendo esta a geração mais qualificada de sempre da História de Portugal. (…) Então esta junção da educação popular, chamemos-lhe assim, com a educação formal acaba por criar uma geração altamente qualificada, mas com conhecimentos não demasiadamente formatados, porém com muita criatividade e com uma maneira de pensar como se diz “outside the box”. (…) Portugal tem muito para oferecer e faz tanta coisa boa que é frustrante que raramente entre no mundo anglófono. No mundo da música, temos músicos fenomenais e que se cantassem em inglês ou lançados no mercado anglófono seriam superestrelas.
É frustrante, depois olhar para algumas coisas medíocres feitas no Canadá que acabam por ter imenso sucesso, quando nós temos tantos melhores! Lá está, não sou nacionalista, mas gosto muito do meu país, da minha cultura, etc…, mas a minha posição crítica, a minha própria relutância, os meus valores e consciencialização política vem da minha formação portuguesa e é daí que também vem o meu cosmopolitismo, que acho que também é uma coisa que faz parte da cultura e História portuguesa, embora uma História recente e muito negativa e que ainda é muito mal contada sobre as “supostas” descobertas, a escravidão etc. Na realidade está na nossa cultura o estar à vontade com o resto do mundo… de sair/partir, de ter um diálogo cultural sendo ou não baseado em mitos, parece-me que é um facto que os portugueses atualmente olham para tal como uma mais valia e reconhecem-se nessa representação da identidade portuguesa, mais global comparando com outras nações. Para mim, comparando o Canadá a Portugal, acho o Canadá um país altamente paroquial, muito fechado em si mesmo e com complexos de superioridade moral que, muitas vezes, me irritam para dizer a verdade.

RA: Aprendeu a amar Portugal desde que imigrou?
GF: Ah… isso também, claro!

RA: E sobre os seus valores, costumes, tradições e cultura?
GF: Quando falamos nisso no contexto da imigração, as imagens que tendem de nos aparecer à cabeça é o rancho folclórico, a matança do porco, as festas religiosas e outro tipo de atividades do género e não da cultura científica, literária ou académica, etc.
A ideia que se tem, é que essas tradições tendem se a congelar, no contexto da imigração e há realmente uma tentativa de congelar as coisas no tempo como elas se faziam na altura quando os imigrantes partiram de Portugal e remontam a um passado muito mitificado e romanticista quem em muitos casos não existia, mas existe na memória e na reconstrução que se faz na memória das pessoas do país que se partiu. Por exemplo, o rancho é uma tradição “inventada”, porque faz parte da criação de uma propaganda do Estado Novo, que nos anos 30 “inventou” o rancho folclórico como uma prática existente em Portugal, do Norte ao Sul, que não é verdade! Para além que está relacionado com outras práticas propagandistas e nacionalistas como da Alemanha nazista e da Itália fascista, etc., da criação do espírito comunitário e nacionalista que remonta às origens simplista e rurais dos povos – o Salazar prezava muito isto, a ligação ao campo.
Então, os trajes e as danças diferentes associadas às respetivas à zona do país foi inventado pela Sociedade Nacional de Informação, propaganda, etc. Nos anos 50, é que realmente se tornam mais populares porque começam a aparecer nos mass media – na televisão – e, tudo que é campanhas de turismo do Estado Novo aquando o Salazar começa a investir mais na propaganda turística, inclusivamente no Canadá e nos Estados Unidos, e os ranchos folclóricos começam a aparecer no mainstream internacional, que leva que a cultura portuguesa comece a ser associada a esse tipo de imagem – imagem rural e tradicional. Os ranchos folclóricos em Portugal não têm o mesmo significado que tem nas diásporas, são coisas diferentes.
Em Portugal o rancho é visto como uma coisa arcaica que remonta ao passado rural e, dependendo das pessoas, até fascista, enquanto que na diáspora não, primeiro porque a história é desconhecida e porque o rancho está associado ao convívio social – pais que querem que os seus filhos convivam com outras crianças portuguesas, que aprendam a falar português e que até encontrem alguém para casar (risos). (…) Quando se fala em tradições, tende-se falar de práticas culturais que não se modificam e ditas autênticas, mas na realidade muitas vezes elas são inventadas para que sejam assim ou entendidas assim, mas acima de tudo, elas alteram-se durante o tempo… aliás a tentativa de cristalizar a cultura, apesar de falhar sempre, faz mais por matar a cultura e os costumes do que por mantê-la viva.

RA: Como pai, o que tenta incutir aos seus filhos? O que acha mais relevante ensinar?
GF: Limitando a questão à portugalidade, para mim e para a minha esposa, Portugal é importante para nós e queremos que eles aprendam a língua portuguesa e para tal, eu falo português em casa, fora algumas exceções quando todos estão a falar em inglês à minha volta (risos). Desde que o nosso filho mais velho nasceu, que tem agora 4 anos, temos ido a Portugal todos os anos e queremos manter isso tanto quanto nos for possível, existe sempre a possibilidade de voltarmos para Portugal – possibilidade não muito remota, que pode acontecer nos próximos anos.

 

RA: Em 2008 tirou o Master of Arts, History/ Ethnic, Migration, and Pluralism Studies, na Universidade de Toronto e em 2014, na Universidade de York tirou Ph.D. em História. Eram duas formações que ambicionava um dia conquistar, ou foram circunstâncias da vida que as proporcionaram?
GF: Foi um bocado as duas coisas… eu sempre ambicionei continuar os meus estudos até onde pudesse ir, sendo o doutoramento o patamar mais alto e também porque surgiram essas oportunidades, de me candidatar a esses cursos. (…)

RA: Hoje é Professor e está ligado ao Departamento de História da Universidade de York em Toronto. Como surgiu essa oportunidade?
GF: Estou ligado à Universidade de York, porque desde do doutoramento tenho feito o chamado trabalho de História Pública com uma série de projetos cujo a ideia é levar a investigação histórica ao público em geral, o proverbial “descer a Torre de Marfim”, foi sempre o meu princípio… não ser aquele académico, que não sei dos corredores da Universidade. A minha atividade de investigação tem sido muito ligada ao público – faço uma série de atividades de História Pública, ou seja, exposições, caminhadas e passeios históricos, documentários, palestras públicas, etc… a ideia é levar conhecimento histórico ao público em geral, principalmente à comunidade que estou a estudar na altura e ao mesmo tempo dar-lhes acesso não só para consumir essa História como também dar acesso a ajudar a criar. (…)

RA: Fale-nos do projeto “História Luso-Canadiana”?
GF: Foi o primeiro projeto que fiz antes do doutoramento e já tem mais de 10 anos. O projeto foi fundado por mim e pela Susana Miranda, mas que contou também com o Rafael Costa e o Manuel da Silva.
A ideia do projeto foi sempre de ir à procura de documentos históricos em mãos de indivíduos e organizações privadas na comunidade portuguesa, obviamente, (…) e facilitar a doação desses documentos para os arquivos da Universidade de York, porque para um historiador, e não só, os arquivos são o que o permite trabalhar e sem os documentos não podem alegar nada. Quando digo documentos, refiro-me a tudo e mais alguma coisa – fotografias, jornais, correspondência, panfletos, atas e minutas de reuniões… tudo que seja documentação produzida e agregada pelos indivíduos e várias organizações.
Hoje temos 10 coleções de documentos de várias pessoas, como do Domingos Marques, da Ilda Januário, do João Santos, do Filipe Gomes, da Associação Democrática Portuguesa, só vou nomear algumas. Com o nosso trabalho, estas coleções de material histórico relacionado com portugueses na América do Norte já é a segunda maior coleção de material histórico sobre os portugueses e que está na Clara Thomas Archives and Special Collections, da Universidade de York. Esta era uma das vertentes do projeto e a outra vertente era com esses documentos e com o nosso trabalho de investigação criar as atividades de História Pública de que já falei.
Este projeto teve e tem muito sucesso, tanto que outras comunidades já o emularam (…) e a Universidade de York reconheceu este trabalho e desde que eu acabei o meu doutoramento, a Universidade tem feito uma campanha de angariação de fundos que me permitem continuar a minha investigação e o meu trabalho de História Pública, aliás o meu primeiro patrocinador, durante 2 anos, foi o Manuel DaCosta, depois foi a Local183 e atualmente estou a trabalhar num projeto que comecei em janeiro, com o patrocínio da Local793 por 3 anos.

RA: E este projeto com a Local 793, de que se trata?
GF: Este projeto tem um nome em latim, Laborem Ex Machina – The History of the Operating Engineers and Heavy Machinery in Canada´s Construction Industry e trata sobre a História desta profissão e da maquinaria pesada e dos avanços tecnológicos e o impacto que isso teve e tem no mundo do trabalho a nível de emprego, e organização sindical e segurança no trabalho.
É uma ocupação muito interessante, uma vez que numa grande parte dos casos a tecnologia e maquinaria acabam por substituir os trabalhadores. (…) Portante, neste caso o avanço tecnológico criou uma nova ocupação, que é o Operating Engineer.
É uma indústria onde a inteligência artificial, a robótica e a construção em 3D já estão a ser aplicadas na construção e que tem impacto a nível de emprego, que por sua vez impacta o sindindicato dos trabalhadores. Para se perceber esse impacto e que já está a acontecer, é vantajoso olhar par o passado e ver outras situações em que o avanço tecnológico tiveram impactos semelhantes e como é que a sociedade e os sindicatos reagiram, como é que o sistema de aprendizagem evoluiu para ir ao encontro das habilitações necessárias para operar as máquinas, etc… é um tema que me está a interessar bastante e cada vez mais. Este projeto vai ser público, pois vou fazer um site, um podcast, etc.
Também estou a iniciar outro projeto que está incerido neste, sobre a participação e a baixa representatividade de trabalhadores indígenas na indústria da construção do Ontário e que tentativas ou esforçosos que se tem feito, pela Local 793 e uma outra organização comunitária com quem também estou a trabalhar, para inverter isso e para se diversificar mais a mão de obra. Focamo-nos especialmente nos indígenas neste projeto, mas estamos interessados também nos fatores que impedem a mão de obra feminina na contrução ou mão de obra de outras comunidades não brancas, questões de descriminação, etc. Portanto este projeto, que estou a gerir – e do qual faço parte da investigação – permite-me gerir o orçamento para fazer várias coisas mais pequenas, mas com impacto e tudo isto providenciado pela doação do sindicato, mas também porque a Universidade tem apostado em mim.

 

RA: O seu primeiro livro, que foi lançado em início 2020, tem como título: This Pilgrim Nation: The Making of the Portuguese Diaspora in Postwar, North America. De onde veio o interesse de pesquisar e escrever sobre a imigração portuguesa no Norte da América após segunda Guerra Mundial?
GF: Este livro advem da adaptação da minha tese de doutoramento para o tornar mais acessível, mas continua a ser um livro académico, com mais conteúdo e algum conteúdo diferente da minha tese.
O livro é sobre a diáspora portuguesa no Canadá e nos Estados Unidos, as relações das comunidades portuguesas com o Estado Novo e com os seus oficiais, qual foi a influência da ditadura na formação das comunidades, fala sobre a história de como o Estado Novo influênciou a formação dos líderes comunitários, mas também a oposição a isso, ou seja, também havia uma grande oposição ao Estado Novo dentro da comunidade, especialmente em Toronto e Montreal e no final fala um pouco sobre o 25 de Abril, do PREC (Processo Revolucionário Em Curso) e dos anos imediatamente a seguir até aos finais dos anos 80, aquando da afirmação de uma política de diáspora, mais articulada e positiva , pelo governo democrata durante os governos do PS e do PSD.

 

RA: Em 2018, lançou um documentário, intitulado City Builders: A History of Immigrant Construction Workers in Postwar. Em que consistiu?
GF: Nesse projeto fiz um documentário de 4 parte, fiz uma série de vídeos de história oral, uma exposição intenerante de multimédia e um site com horas e horas de conteúdo digital. Este projetos levou cerca de 2 anos que foi patrocinado pela Local 183 e feito na Universidade de York.

RA: E o que ainda falta escrever sobre a imigração portuguesa no Norte América?
GF: Ao nível do Canadá a maior parte dos estudos que têm vindo a ser feitos, inclusive os meus, focam os meios urbanos, como Toronto e Montreal, o que é justificável porque é nas cidades que se encontram grande parte dos imigrantes portugueses, porém há muitos portugueses no meio rural, a minha esposa, por exemplo, vem do meio rural cujas expêriencias são relativamente diferentes e que merecem mais estudos ou um estudo próprio (…). Nos Estados Unidos já existe comunidades portuguesas desde do ínicio da grande onda de emigração europeia para os Estados Unidos, desde dos anos 20, quando foram atrás do ouro na Califórnia até à costa leste, portante aqui há uma História muito mais antiga e comunidades muito mais numerosas e como tal a riqueza e a quantidade de histórias para contar são maiores.
Portanto a História dos português no Canadá é muito mais recente, apesar de existir presença portuguesa na Terra Nova mais cedo, comunidade propriamente dita é de 1953.
Os meus estudos tendem a ir até meados a finais dos anos 70 – os meados, porque é uma altura com uma identidade própria, que depois nos finais dos anos 70 se centra num novo período da História e muito atual, é mais difícil escrever História sobre um passado-recente, do que de um passado-passado. Mas, à medida que o tempo vai passando, ainda há histórias para contar dos anos 70 até atualmente e eu tenho aprendido muito mais essa história a trabalhar no projeto City Builders – a História dos imigrantes portugueses na construção, no seu sindicalismo e sua sindicalisação, a imigração indocumentada, ou seja, histórias muito interessantes… mas há outra áreas, algumas que já foram estudadas, mas que podem ter mais estudos e que têm que ser atualizados, portanto questões relacionados as dinâmicas interacionais e a comunidade portuguesa está a entrar no Canadá, na quarta geração, mas bastante jovem.
Uma coisa que realmente que hoje é uma verdade à la palisse que há anos não era, é que tradicionalmente entendia-se que a identidade cultural da imigração era algo que depois de duas ou de três gerações íam esmorecendo e perdendo-se ao longo dos tempos e é sabido hoje, que isso não é bem assim que funciona, pode acontecer em alguns casos, mas não necessariamente. (…)

RA: E o porquê do interesse da imigração portuguesa?
GF: Porque depois da queda do império, em 1975, Portugal, entre as elites políticas e intelectuais, entra numa crise de identidade nacional, ou seja, um país que sempre se autojustificou, auto-entendeu e que se posicionou no mundo como potência imperial mais de 500 anos, de repente vê-se sem império e passa a ser um retângulo pequenino na periferia da Europa. Um país que mentalmente era grande, ao nível do seu imaginário nacionalista, de repente ficou cingido e desfasado muito da auto perceção que os portugueses tinham de si próprios. Então a maneira que a classe política e intelectual encontrou para substituir o império foi criar a diáspora.
A diáspora passou a ser esse povo global que justificava a ideia de que Portugal e que os portugueses têm de si mesmo, de ser uma nação global. Uma nação em que a cidadania não está presa a um espaço terrestre, mas sim ligado por questões culturais, linguísticas, etc., o que depois se traduz num grande impacto, como por exemplo, no facto dos imigrantes terem deputados que possam votar, de terem o Conselho das Comunidades Portuguesas, programas políticos de apoio ao imigrante e outras mais valias.
Eu comecei a interessar-me por este tema durante a minha licenciatura, apesar que não era sobre a História de Portugal, mas uma grande parte era e lembra-me de ler um ou dois artigos sobre a imigração… e a imigração tem uma importância enorme na História Moderna e Contemporânea do nosso país, mas naquela altura a imigração não era visto como um tema muito relevante, talvez porque não tinham passados muitos anos depois do 25 de Abril.
Hoje em dia a produção historiográfica e o número de investigadores é muito superior comparado quando eu fiz o doutoramento. (…) O meu interesse pelo tema da imigração intensificou-se depois de eu emigrar, quando cheguei ao Canadá tinha acabado a licenciatura recentemente e uns anos depois fiz o meu mestrado e quando acabei comecei a pensar a que área de investigação me poderia dedicar, que fosse o meu “niche” e como português com conhecimentos sobre a História de Portugal, da zona do país de onde saiu a primeira geração de imigrantes e até um conhecimento quase intuitivo e algumas referências comuns aos imigrantes que passariam ao lado de um investigador canadiano ou luso-canadiano como, por exemplo, detetar “silêncios”… ou seja, o facto de uma pessoa não falar sobre algo, às vezes, diz mais do que se falar mas para tal o investigador tem que perceber o contexto todo em que se está inserido e eu percebia esse contexto, pois era o mesmo que o meu. À medida que fui estudando e investigando sobre a imigração portuguesa, “apaixonei-me” por ele.

RA: A história dos imigrantes portugueses na diápora do Canadá é mesmo interessante…
GF: É sem dúvida um tema interessatíssimo, especialmente a relação com a diáspora e os transnacionalismos (…) e apercebi-me que a História dos portugueses, no Canadá é realmente extremamente rica, com personagens, eventos e processos interessantes e acho que está na altura dos luso-canadianos saberem essa História.
A comunidade em si já existe há mais de 60 anos e não precisa retratar a História de Portugal, mas obviamente que a História de Portugal teve muito peso sobre a História dos imigrantes no Canadá como noutros países, mas a presença que é bastante grande, antiga e interessante – interessante não só para Portugal e para a sociedade portuguesa porque a diáspora tem impacto na vida dos portugueses em Portugal, mas também, e talvez ainda mais, para a sociedade canadiana pois os portugueses não eram “espetadores” da história de onde eles estavam… eram, foram e são muito interventivos e participativos.
Eu diria que a História dos portugueses no Canadá é a História do Canadá e é a História de Portugal. O interesse pela História dos portugueses no Canadá vai para além da própria comunidade, mas claro que a comunidade será a primeira interessada e acho que se os portugueses que se interessarem pela sua história, vão ver que o tempo que dedicaram será um tempo bem passado e bem investido, ficando a preceber muito melhor não só a história da sua comunidade como também de si mesmo como indivíduos e suas famílias, da sua cidade e do seu país, etc.

RA: Na sua opinião, como é que é visto o imigrante?
GF: Hoje em dia a visão que se tem do imigrante é muito diferente da que se tinha nos anos 70. Sendo que também está relacionado com o facto que nós imigrantes atualmente somos, talvez não na maioria mas uma grande parte, jovens muito bem qualificados para ir para o estrangeiro. Hoje em dia os jovens vêm de um Portugal moderno e de meios urbanos que mantêm ligações económicas, científicas, culturais, etc. com o país e acabam por ser um pouco os embaixadores no estrangeiro, os imigrantes sempre o foram, mas digamos que estes jovens mais qualificados tendem a mostrar um Portugal diferente… mais progressista e sofisticado que contribuiu para a transformação dos pontos de vista do que é a imigração.

Carmo Monteiro

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