Miguel Duarte: Salvar vidas não é crime
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Miguel Duarte: Salvar vidas não é crime

Miguel Duarte trabalhou como voluntário com mais nove pessoas na organização não-governamental (ONG) alemã Jugend Rettet, que, a bordo do navio Iuventa, participou em missões de resgate de migrantes e refugiados no Mediterrâneo.

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Revista Amar: Ouvimos muitas vezes acusar os jovens da falta de causas. Como e em que circunstâncias decidiu abraçar esta causa humanitária?
Miguel Duarte: Em 2015 e 2016 foi o pico de atenção mediática sobre a chamada “crise dos refugiados”. Nessa altura, eu, como tantas outras pessoas, mantive-me em frente à televisão a testemunhar com horror as provações a que eram submetidas famílias inteiras para encontrar um local seguro onde viver. Ouvi falar do navio Iuventa pela primeira vez no verão de 2016, quando ia apenas a meio da sua primeira missão de resgate. Tinha passado pouco mais de uma semana e a tripulação de 15 voluntários alemães já tinha conseguido participar no resgate de cerca de mil pessoas. Isto fez-me sentir muitas coisas: Em primeiro lugar o trabalho desta pequena ONG fascinou-me. Em segundo deu-me a sensação de que algo de fundamentalmente errado tinha que estar a acontecer para que as vidas destas pessoas estivessem dependentes de jovens voluntários. Na altura contactei-os, entrevistaram-me e decidiram convidar-me para me juntar a uma missão nesse verão ainda. Comecei aí e acabei por passar o ano seguinte entre missões no mar e nos campos de refugiados da Grécia e da Turquia. Só para rematar, não sou da opinião que os jovens de hoje em dia tenham falta de causas. Acho até o contrário. Basta olharmos à volta para vermos protestos contra todo o tipo de injustiças no mundo inteiro. A minha geração vai ser quem vai ter que lidar com as consequências da destruição ambiental causada pelo sistema económico atual e acho que os jovens estão a aperceber-se disso cada vez mais.

RA: O que sente um jovem que é acusado de auxílio à emigração ilegal apenas por ter desempenhado a função mais nobre que um ser humano pode abarcar, que é salvar vidas?
MD: Deixe-me apenas fazer uma pequena correção: Eu fui constituído arguido por suspeita de auxílio à imigração ilegal. Isso significa que ainda não houve uma acusação formal. Estou oficialmente sob investigação. Aquilo que sinto é uma frustração gigantesca pelo facto de não poder estar neste momento onde sei que podia ser mais útil. A tripulação do Iuventa, ao fim de um ano de actividade, participou no resgate de cerca de 14 mil pessoas. Está parado há dois anos por causa desta investigação, que não passa de uma jogada política. Podemos então imaginar quantas pessoas terão perdido a vida de forma completamente evitável se não estivéssemos entretidos a discutir se salvar vidas está certo ou errado. Não sinto medo de ir preso porque julgo que é improvável que isso aconteça, pelo menos num futuro próximo. Este processo é apenas mais uma confirmação de que os nossos representantes estão dispostos a ser responsáveis pela perda de mais vidas para conseguir os seus objetivos eleitorais.

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RA: Como explica esta acusação à luz do Direito Internacional, quando todos os dias sentimos o apelo ao nosso contributo para ajudar mitigar os inúmeros problemas humanitários que chegam ao nosso conhecimento através da comunicação social. Não seremos levados a pensar que existe aqui algum tipo de hipocrisia social?
MD: Temos que olhar para este processo como parte de uma estratégia política para culpar os migrantes de todos os males sofridos pelos locais. Toda a campanha eleitoral da extrema-direita em Itália nas últimas eleições foi montada à volta da demonização das ONGs de resgate e houve um esforço enorme para envolver a maior parte delas em processos legais completamente infundados. Mais tarde essa mesma extrema-direita acabou no governo, o que só piorou as coisas para as organizações humanitárias mas principalmente para os migrantes. Somos levados a pensar que existe algum tipo de hipocrisia? Sem dúvida. Tudo isto não passa de hipocrisia. A culpa de se viver mal em países europeus não é dos migrantes, é de décadas de políticas erradas que deixam as pessoas (incluindo os migrantes) desprotegidas.

RA: O Secretário-Geral das Nações Unidas António Guterres disse há dias no Encontro da Juventude em Lisboa, que “as Nações Unidas estarão sempre ao lado dos jovens, enquanto estes defenderem a justiça”. Será este um caso de discurso politicamente correto ou a porta aberta para a defesa do mais elementar direito humano, a vida?
MD: Não vejo que tenha havido uma grande intervenção das Nações Unidas em casos como o nosso e, sinceramente, não sei como poderiam ajudar. Não sei a que se referia António Guterres quando disse essas palavras, mas não me parece que a ONU nos valha neste caso e muito menos valerá aos milhares de migrantes que vivem vidas miseráveis em Itália e noutros países por não terem acesso a papéis regularizados. Deposito mais fé nas organizações da sociedade civil, movidas pela solidariedade entre pessoas e pela crença num mundo melhor.

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RA: Após se ter visto envolvido nesta tempestade mediática, na sua opinião que poder desempenham as redes sociais na denúncia das injustiças? Surpreendeu-o a avalanche de mensagens solidárias e todo o apoio que se recebeu?
MD: As redes sociais tiveram um papel fundamental na divulgação inicial. Foi através do Facebook que o vídeo da campanha se tornou viral e foi apenas depois disso que os média e, por consequência, os partidos e o governo pegaram no assunto. De facto o apoio todo que recebemos foi impressionante e inesperado. Montámos a campanha com um teto de 5 mil euros e acabámos por atingir quase 55 mil. O apoio das pessoas em geral foi espantoso e sinto-o como um grande privilégio que me foi concedido. Acho que foi uma situação reveladora de que as pessoas querem um mundo mais justo e solidário, e que não é por um estado ou outro se mostrarem contra isso que elas perdem o ânimo. Sei que toda esta solidariedade e mensagens de apoio não são propriamente para mim mas para uma causa maior. No entanto é uma honra poder ser um veículo para essa causa.

RA: Como cidadãos do mundo, como podemos ajudar a mitigar este problema global das migrações dos refugiados?
MD: Só o facto de lhe chamarmos “problema das migrações” é sintomático da nossa perda de contacto com a história. Tanto quanto sabemos as migrações existem desde que existe ser humano. Um invenção bastante mais recente é a fortaleza que erguemos em torno da Europa que é completamente permeável à passagem de bens e dinheiro e quase completamente impermeável à passagem de migrantes. São as fronteiras que alimentam as redes de tráfico humano, não as organizações humanitárias. Aquilo que podemos fazer é votar com a consciência de que não existem barreiras intransponíveis, que ninguém é ilegal e que a liberdade de movimento deve ser um direito. Além disso é necessário apoiar as organizações que fazem um bom trabalho na linha da frente e protestar contra decisões desumanas quando é caso disso.

Guglielmo Manenti

RA: Certamente cada refugiado resgatado tem uma história de vida, das inúmeras de que tomou conhecimento destacaria alguma em particular?
MD: Ouvi muitas histórias, cada uma mais aterradora do que a anterior. Muitas vezes são pessoas que perderam tudo. Infelizmente conheci várias pessoas cujas famílias tinham sito assassinadas à sua frente e que só por sorte escaparam. Conheci também muitas pessoas que escapavam da pobreza extrema e de regimes brutais e corruptos. Estou ainda em contacto com um rapaz da Nigéria que iniciou a viagem para a Líbia com o irmão. À chegada foram presos, torturados e roubados nas infames prisões da Líbia. Quando se conseguiram ver livres só tiveram dinheiro para a passagem de um deles. Isto foi em 2016 e o irmão deste rapaz continua na Líbia.

RA: Sente que as tempestades em terra são mais difíceis de enfrentar do que as que ocorrem no mar Mediterrâneo?
MD: Sinto que nós europeus não fazemos ideia do que é uma tempestade. Nunca vimos uma. Tempestades são o que milhares e milhares de homens, mulheres e crianças atravessam quando se vêm obrigados a arriscar a sua vida e a das suas famílias para encontrar um local seguro onde viver. Tempestade é escapar de uma ditadura, atravessar um deserto, ser torturado numa prisão Líbia, dar tudo o que se tem por um lugar num barco mal construído e, uma vez chegado ao outro lado, ouvir que falta um papel para se ser aceite na sociedade.

Carlos Cruchinho

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