Eduardo Lourenço: Uma vida de livros e solidão de afetos
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Eduardo Lourenço: Uma vida de livros e solidão de afetos

Revista Amar - Portugal - Eduardo Lourenço
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Eduardo Lourenço de Faria nasceu em São Pedro do Rio Seco, no concelho de Almeida, distrito da Guarda, em 23 de maio de 1923 (embora conste do assento de nascimento a data de 29 de maio). Era filho de Abílio de Faria, 2.º Sargento de Infantaria, e de Maria de Jesus Lourenço.

O prestigiado intelectual era casado desde 1954 com Annie Salomon, natural da Bretanha, que, tal como ele, deu aulas na Universidade de Nice até se jubilarem, em 1988-1989.

Filha de um “lavrador que teria sido tecelão”, conforme Eduardo Lourenço chegou a descrevê-la, a sua mãe, Maria de Jesus, mulher de “profunda religiosidade”, sincera e rural, marcou-o com a sua presença. O pai também teve importância, mas mais pela ausência. Com muitos irmãos e oriundo de Lagares da Beira, filho de um pequeno comerciante, Abílio de Faria viu-se obrigado a alistar-se como voluntário na “tropa”, por não dispor de recursos para ser médico como pretendia.

A vocação para vir a ser alguém encantado pelos livros – e até fazedor de alguns bons livros – nasceu em sua casa, durante a infância, em São Pedro do Rio Seco, conforme Eduardo Lourenço recordava, em entrevista à revista “Ler”, em setembro de 2008: “ (…) O meu pai tinha tido uma certa escolaridade. Tinha frequentado uma escola comercial no Porto. Ainda jovem, tinha-se alistado no Exército mas não com a ideia de ficar lá. A ideia dele era ser médico. Portanto, havia uma série de livros que ele deixou lá na aldeia”.

Os estudos e o cinema

Eduardo Lourenço frequentou a Escola Primária em S. Pedro do Rio Seco (1930-1931), tendo partido no ano seguinte com a mãe e os irmãos para a Guarda, onde o pai era alferes de Infantaria. Concluiu o 2.º grau do Ensino Primário, em 1933, em Almeida, sendo aprovado com distinção no exame final. Em 1934, ano em que o pai partiu para África (Moçambique) – onde ficou meia dúzia de anos, longe da família, para a poder sustentar -, Eduardo Lourenço regressou à Guarda, onde frequentou o 1.º ano do Ensino Secundário no Liceu Afonso de Albuquerque.

Dos 11 aos 17 anos esteve internado no Colégio Militar, em Lisboa, “como podia ter ido para o seminário”, conforme diria o ensaísta à revista “Visão”, em maio de 2003. Viveu seis anos, interno naquilo que classificava como “um buraco negro” e do qual não gostava de falar. “Um tipo do meu género engaiolado! Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário. Mas a lembrança mais dolorosa é a de ficar no colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos, restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado. Já a maior alegria era ir ao cinema, na Amadora, com os meus tios”, revelou também Eduardo Lourenço à “Visão”. O Colégio Militar era um estabelecimento de elite. Parte dos filhos do escol militar e social frequentava esse colégio.

“O Cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. Não uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral, onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes, momentos da minha adolescência. Para mim, havia então dois Portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o céu, o moderno sobrena

tural, e ao pé dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia”, dizia Eduardo Lourenço.
Concluído o curso, em 1940, fez provas de admissão aos cursos preparatórios destinados a alunos provenientes das escolas militares, e foi admitido pela Faculdade de Ciências (que lhe daria acesso à Escola de Guerra, a que estava destinado). No entanto, no final do primeiro período, vendeu as sebentas e passou o ano inteiro na Biblioteca, a ler Nietzsche e outros filósofos.

A marca mais forte que lhe tinha ficado do Colégio Militar, além das boas notas nas redações, havia sido o gosto pela História. Como a maioria dos colegas não se interessava por ela, Eduardo Lourenço atribuía essa paixão à influência de um professor (Sanches da Gama), assim como à “mala de livros” (com “enciclopédias, a ‘História de Portugal’ de Fortunato Almeida, eu sei lá…”) que o pai tinha deixado em São Pedro do Rio Seco. “Como não tinha mais nada para ler, esses livros de História foram a minha ficção. A maior das minhas paixões é a História. A História como a ficção suprema da humanidade”, confessou um dia Eduardo Lourenço ao jornal “Público”.
Em 1941, desistiu dos cursos preparatórios para a Escola de Guerra e prestou provas de aptidão com destino à licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas, “por ser o curso para que iam os que não tinham mais nenhum sítio para onde ir, e porque aquilo de que sempre gostei mais foi de História”, revelou também o ensaísta, em entrevista à revista “Visão”.

Primeiras leituras e solidão de afetos

Falando dos pais à mesma publicação e referindo-se concretamente a Abílio de Faria, Eduardo Lourenço confessou: “Nunca houve entre nós essa relação íntima, secreta, que há entre um pai e um filho”. A propósito disso, José Carlos de Vasconcelos recordava na “Visão”, em 2003, que, “numa pungente página” do “Diário” (inédito) do ensaísta, publicada então no “Jornal de Letras”, Eduardo Lourenço começa por escrever: “Em minha casa, cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita”.

O jornalista recordava também que, em 1996, conversando com Eduardo Lourenço sobre os seus primeiros escritos (depois de ele ter sido o primeiro ensaísta a ganhar o Prémio Camões), ele fez uma súbita pausa no discurso e comentou: “Só Deus e Freud é que devem saber porque escolhi o nome literário de Eduardo Lourenço. Talvez porque estava impregnado dessa ideia dos Lourenços. Hoje, penso nisso com alguma melancolia. Ou com algum remorso”.

No mundo das leituras, “As Pupilas do Senhor Reitor” e “A Morgadinha dos Canaviais” de Júlio Dinis foram o seu primeiro encantamento. A descoberta de Eça de Queirós deu-se mais tarde, quando chegou à Universidade, em Coimbra porque – conforme recordava Eduardo Lourenço à revista “Ler” -, “o ensino literário no Colégio Militar (…) não seria muito famoso. Ficávamo-nos pelos autores que vinham nas seletas. Não se vinha até à modernidade. Lembro-me de que, naquela altura, as antologias se ficavam pelo Guerra Junqueiro (…)”, justificava assim o ensaísta o seu contacto tardio com a obra de Eça de Queirós.

Contacto com escritores e prática do catolicismo

Com a idade que tinha, sentia uma grande curiosidade por temas que achava estarem fora do seu alcance e, por isso, lhe pareciam misteriosos. Foi nessa altura que também descobriu a “Revista de Portugal”, que Vitorino Nemésio tinha concebido e dirigia num momento de importante viragem na Literatura Portuguesa. Era uma publicação que Eduardo Lourenço considerava ter sido a sua “iniciação” (o primeiro contacto) com os escritores vivos (“Até aí, eu pensava que os escritores estavam todos mortos…”, dizia o ensaísta com humor).

Eduardo Lourenço, que era também assíduo frequentador das tertúlias literárias, convivia com jovens da sua geração (entre os quais se contava Eugénio de Andrade) e pessoas mais velhas (nomeadamente Miguel Torga, com o qual teve uma forte ligação). Torga apreciava tanto Eduardo Lourenço que até lhe oferecia os livros com simpáticas dedicatórias, o que não era hábito do escritor. Aliás, foi Miguel Torga quem levou Eduardo Lourenço a publicar o seu primeiro livro, “Heterodoxia I” (1949), tendo tratado até da sua edição. E foi à obra de Miguel Torga que Eduardo Lourenço dedicou o seu segundo livro “O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga e o das Novas Gerações” (1955).

Católico praticante, membro do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) em Coimbra – que o abade de São Pedro do Rio Seco recomendara à sua mãe fosse frequentado por ele -, o jovem estudante começou a aproximar-se dos neo-realistas, mas sempre crítico, independente e heterodoxo. A ligação maior foi com Carlos de Oliveira, seu colega de curso, dois anos mais velho. Conforme o ensaísta dizia, era um colega com uma “formação literária” que ele não tinha e que, mais tarde, ele haveria de ter na conta de “uma espécie de Torga mais requintado e sombrio”.

Revista Amar - Portugal - Eduardo Lourenço
Eduardo Lourenço recebeu prémio Livraria Lello, em 2019 – Créditos © Maria João Gala / Global Imagens

 

Carreira universitária

Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, em 1946, defendendo a tese de licenciatura subordinada ao tema “O Sentido da Dialéctica no Idealismo Absoluto” (publicada mais tarde, parcialmente, em “Heterodoxia I”). Concluiu o curso com 18 valores. No ano seguinte, foi convidado para Assistente do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da mesma universidade, atividade que veio a exercer no período de 1950-1953.

Entretanto, em 1949, partira para França, a convite do reitor da Faculdade de Letras da Universidade de Bordéus, com uma bolsa de estágio da Fundação Fulbright. Foi leitor nas universidades de Hamburgo (1953), Heidelberg (1954) e Montpellier (1955), foi professor convidado na Universidade da Baía (1958) e, a convite do Governo francês, tornou-se leitor na Universidade de Grenoble entre os anos letivos de 1960-1961 e 1964-1965. Foi também professor convidado da Universidade Nova de Lisboa em 1973, e foi conselheiro cultural junto da Embaixada Portuguesa em Roma (até ao ano de 1991).

“Nunca tive para mim estatuto de ‘professor Eduardo Lourenço’. Fui um professor muito atípico – as pessoas só há pouco tempo é que me tratam assim. Essa é uma das coisas da cultura portuguesa, a complexidade chinesa nos tratamentos. Deixo de escrever cartas porque não sei como é que as hei-de tratar! Às vezes dizem-me ‘professor doutor’. Eu digo: ‘Professor sem ser doutor e doutor sem ser professor’. Mas nunca fui as duas coisas ao mesmo tempo. Eu não vivo nessa categoria de professor (…) Nunca apostei numa forma de carreira, de nenhuma espécie”, declarava Eduardo Lourenço à revista “Pública” em 2003.

Em 1948-1949 ocorreram dois factos que viriam a mudar-lhe a vida. A mãe e o pai faleceram, com cerca de seis meses intervalo. “Com 26 anos, fiquei chefe de família”, recordava.

Das tertúlias dos cafés aos prémios e às distinções

“Passei a primeira parte da minha vida nos cafés a palear, fornecendo matéria para alguns camaradas e outros ouvintes escreverem o que eu dizia. Se tivesse continuado em Portugal acho que não tinha escrito nada. E se tivesse nascido milionário seria pior do que o Mandarim do Eça (de Queirós)”, comentava Eduardo Lourenço por ocasião das comemorações do seu 80.º aniversário.

Ensaísta, professor universitário, filósofo e intelectual português influenciado pela leitura de Husserl, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Sartre, bem como pelas obras de Dostoievski, Franz Kafka e Albert Camus, esteve de certo modo ligado ao existencialismo, sobretudo por volta da década de 1950, altura em que colaborou na “Árvore” e se tornou amigo de Vergílio Ferreira.

Como leitor e, depois, “maître-assistant” da Universidade de Nice (Faculdade de Letras e Ciências Sociais) – e como professor associado até à jubilação, em 1988-1989 -, Eduardo Lourenço conhecia a Provença, no sudeste de França, desde 1965, tendo fixado residência em Vence (Alpes Marítimos), onde comprou casa na Avenue de Provence, em 1974.

Fora de Portugal desde 1953 como professor, nunca saiu do nosso país e aceitava todos os convites para “fisicamente” voltar. Eduardo Lourenço criou um mundo onde Portugal entrava constantemente através de livros, jornais e revistas.

Foram-lhe atribuídas a Ordem de Santiago da Espada (1981), a Ordem do Infante D. Henrique (Grande Oficial) (1989) e “L’Ordre de Mérite” (Ordem de Mérito, distinção do Governo Francês) (1996). Foi distinguido pela França como “Chevalier” (cavaleiro) de “L’Ordre des Arts et des Lettres” (Ordem das Artes e das Letras) (2000), “Chevalier” da ordem nacional “Légion d’Honneur” (Legião de Honra) (2002) e a Medalha de Mérito Cultural (2008), atribuída pelo Governo português.

Entre outros galardões, Eduardo Lourenço recebeu o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon (1981), o Prémio Camões (1996) e o Prémio Vergílio Ferreira (2001).

Pensador da cultura portuguesa

Com um fulgor de inteligência, imaginação e intuição, uma capacidade de relacionamento e metaforização, uma natural ironia e auto-ironia, Eduardo Lourenço fascina com a sua escrita. E, como conversador – com os amigos, em conferências, lições e intervenções (que, em geral não preparava muito, limitando-se a umas notas manuscritas), ouvi-lo era deslumbrante. Tudo lhe servia de pretexto para longas e admiráveis falas (uma expressão envolvente, a que não faltava nem o achado de linguagem nem a inesperada/inspirada “saída” fora dos cânones), nas quais a sua excecional cultura era sempre um cais de partida mas nunca um ponto de chegada. O que significa que boa parte da sua obra ficará inédita…

Intérprete maior das questões da cultura portuguesa e universal, Eduardo Lourenço é tido como um dos mais prestigiados intelectuais europeus, que marcou durante mais de meio século o pensamento português (com especial ressonância no pós-25 de Abril). A sua voz exercia um grande e consensual fascínio sobre a intelectualidade portuguesa, surpreendendo pela “capacidade de ser portador de um olhar sempre diferente e inquietante sobre os problemas de que se ocupa”, espantando pela “pluralidade de interesses, a imensidão de uma cultura que não se entrincheira em redutos de erudição, o jogo ilimitado das referências”, conforme escreveu Eduardo Prado Coelho em “Eduardo Lourenço: Um Rio Luminoso”, in “A Mecânica dos Fluidos” (1984).
Crítico e ensaísta literário, virado predominantemente para a poesia, assinou ensaios polémicos como “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?” in “O Comércio do Porto” (1960) ou um singular estudo sobre o neo-realismo intitulado “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista” (1968). Da sua vasta obra – disseminada em cerca de meia centena de livros abarcando áreas tão diversas como a literatura, crítica literária, filosofia, teoria política, história, cultura e ensaísmo – destacam-se reflexões sobre a cultura portuguesa, como o “Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português”, 1978; “A Europa desencantada: para uma mitologia europeia”, 1994; “O esplendor do caos”, 1998; “A nau de Ícaro”, 1999 e “A morte de Colombo. Metamorfose e fim do Ocidente como mito”, 2005.

JN

 

 

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