São Teotónio - II
História

São Teotónio – II

A peregrinação à Terra Santa

A leitura e a viagem são por vezes as duas faces da mesma moeda, capazes de uma cumplicidade única. A leitura do livro Terra Prometida, impressões de uma viagem de Jorge Oliveira Pinto e a minha mais recente viagem à ilha de Chipre no mediterrâneo oriental deram o mote para este breve apontamento escrito.

Natividade – Vasco Fernandes (Grão Vasco), c. 1506-11,
Óleo sobre madeira (131 x 81 cm)
Museu Grão Vasco, Viseu

Ao terminar o meu último artigo sobre S. Teotónio, comprometi-me a relatar sucintamente as duas peregrinações do primeiro santo português a Jerusalém, na Terra Santa. Citando o livro “Vida de S. Theotonio” escrito por um discípulo anónimo, “Crescia S. Teotónio cada vez mais no amor de Deus e na perfeição das virtudes. Sua memoria se ocupava nas cousas do Céu, sem esquecer a presença da Paixão do Salvador. Avivava muito a sua devoção a saudade e ancia de comtemplar os mysterios da vida e morte de Christo ‘ naqueles lugares, que foram sanctificados com os seus passos e sangue precioso.”

Calvário – Vasco Fernandes (Grão Vasco), c. 1530,
Óleo sobre madeira de castanho (242.3 x 239.3 cm)
Museu Grão Vasco, Viseu

Padroeiro de Viseu

Durante todo o milénio medieval e prolongando-se nos tempos modernos, persistia uma certa “fobia” marítima, como nos atestam numerosos ditos e provérbios: «Louvemos e cantemos o mar, mas fiquemos em terra!». «É mais seguro andar em terra em velha carroça, do que no mar em navio novo!». Por sua vez, no seu bom senso muito realista e pouco poético, Sancho Pança recomendava a quem o ouvia: «Se queres aprender a rezar, faz-te ao mar!»

No entanto, S. Teotónio, mesmo sabendo que as viagens eram tudo menos seguras e isentas de perigos, ainda assim e segundo o seu discípulo, “Elle se esquece de sua casa, e parentes: não o detem a familiaridade dos amigos, o amor da pátria, o obsequio dos criados, o uso da fazenda, ou alguma outra cousa do seculo: de tudo se desembaraça, sahindo de Viseu e de Portugal com grande numero de romeiros, para a segunda vez começar a jornada de Jerusalem.”

Ainda segundo relato feito na “Vida de S. Theotonio”, o santo faz a sua primeira paragem. “Passadas pois 10 semanas, chegou com feliz successo ao Porto de S.Nicolau, guiado por Deus: mas ali lhe faltou a prospera maré dos ventos, e foi obrigado a deter-se seis semanas continuas.”

Eis que, “Chegou o tempo e vento favorável a prosseguir a navegação. Estendidas pelos marinheiros as velas aos ventos, todos começaram a perigar com a repentina tempestade dos mares. Navegando pois a embarcação juncto ao Promontorio de Malea, de repente se escureceu o Céu, e uma obscura nuvem, com violência de ventos e estrondo terrível, os deixou em Trévas.”

Segundo uma comunicação do Dr. Armando Martins (2011), O Mar em hagiografias medievais de tradição Portuguesa: ”Se os medos do mar, nunca foram totalmente exorcizados ao longo dos séculos, no entanto, em grande medida, foram enfrentados e superados, sem o que não teria havido nem viajantes e viagens, nem a gesta de navegadores e de povos do mar. Primeiro, os medos foram vencidos no mediterrâneo onde, desde a época das Cruzadas, se abriu a rota de Jerusalém, em direcção aos portos da Síria ou do Mar Negro e cuja frequência seria tal que, logo se estabeleceram carreiras regulares partindo de Veneza ou de Génova. Na primeira metade do século XII, segundo o autor anónimo da sua Vida, para aí navegou, por duas vezes, como peregrino, por entre perigos, o português D. Teotónio, clérigo da igreja de Viseu e futuro primeiro prior do mosteiro de S. Cruz de Coimbra. O mediterrâneo abria as portas para outros espaços orientais da «Ásia das maravilhas» entrevistos, particularmente a partir do século XIII, por italianos como Marco Pólo (1254-1324), cujos relatos, progressivamente, aguçaram curiosidades e despertaram desejos.”

Após a tempestade vem a bonança e depois da provação vem o júbilo da chegada a bom porto. S. Teotónio visita os lugares santos.

Segundo o capítulo XII, do livro “Vida de S. Theotonio”, o peregrino, “Livre pois do golfo de Malea, com todos os que estavam com elle na náu, passadas trez semanas, desde que partira do porto de Bari ou S. Nicoláu, andou os mares, até chegar ao porto de Jope. D`ahi por rodeios mui dilatados de caminho deu volta pela sepultura de S. Jorge Martyr, até que chegou a Nazareth que nutriu e foi pátria de nosso Senhor Salvador. Logo caminhou pelo caminho que leva ao monte Tabor, em que o senhor se transfigurou. Subiu á eminencia d’este monte, e via com muito cuidado muitos lugares, que o Senhor sanctificou em sua peregrinação. E adorando em cada um dos lugares ao Redemptor do mundo, subiu com alegria ao mui celebre oiteiro ou montezinho, donde se vê a Cidade de Jerusalem, que tanto desejava: os naturaes e os que concorrem lhe chamam o monte do Jubilo, pelo inefável prazer e gosto que os peregrinos ahi concebem de ver a Cidade Sancta. Aqui pois, dobrados os joelhos, manifestaram as lagrimas misturas com gosto, quanta fosse a sua alegria, quantas as graças que a Deus dava.“

Nestes tempos de incerteza, onde a desconfiança em relação aos estrangeiros desconhecidos, ergue muros e encerra fronteiras, nada melhor do que peregrinar pelo mundo para alimentar a fraternidade e o diálogo intercultural entre os povos. Umas boas leituras farão o resto.

Carlos Cruchinho

Licenciado no ensino da História e Ciências Sociais

 

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