Véspera dos Clã
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Véspera dos Clã

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Fotografia © João Octávio Peixoto

 

Os Clã regressam com um disco muito bem feito, como habitualmente. O novo registo discográfico mostra a mestria e o bom gosto da banda, num trabalho para ser bem escutado. Longe vai o funk original ou os hinos pop de puxar por um palco ou por uma pista de dança, mas o seu registo nunca foi abaixo de bom. Agora, os portuenses regressam com o seu oitavo disco de originais, intitulado Véspera.

Revista Amar: Manuela Azevedo obrigado por ter aceitado este convite para falarmos um bocadinho para a nossa comunidade. Já houve oportunidade de visitar o Canadá?
Manuela Azevedo: Não e muito menos levarmos a música dos Clã ao Canadá. Mas estou muito contente por termos este contacto .

RA: Indo ao início do teu percurso. Antes de ser quem és e uma artista profissional, podemos dizer que o responsável pelo click para a música foi o teu irmão? Num primeiro momento através do folclore não foi?
MA: Exactamente. Eu tenho dois irmãos muito mais velhos do que eu. Eu já apareci assim um pouquinho fora de horas (risos). O irmão mais velho sempre se envolveu muito com as atividades da nossa freguesia e uma delas era justamente dançar no rancho folclórico. Quando nós levávamos umas ovelhas que tínhamos a pastar, ele aproveitava o tempo a ensinar-me os viras e as chulas… os malhões e coisas assim. De maneira que o meu primeiro contacto forte, mais físico com a música acabou por ser dançando e não necessariamente cantando. Esse meu irmão mais velho era baterista numa banda que tocava em bailes e arraiais e como eu era afinada desde miúda, convenceram-me a ir cantar com eles. De maneira que, com 5 ou 6 anos, já andava a cantar músicas da Tonicha, Roberto Carlos… do José Cid nas festas das aldeias.

RA: E o gosto pelo piano. Como é que surgiu?
MA: Surgiu também ainda nos primeiros anos. Os meus pais perceberam que eu tinha alguma facilidade com a música e gosto. Havia uma professora na nossa aldeia, a Esmeralda, que dava umas aulas de educação musical. Comecei a ter umas primeiras aulas com ela. Depois fui estudar com a dona Esperancinha de Vila do Conde. Eram umas aulas maravilhosas num harmónio naqueles teclados que tens que dar aos pedais para dar fole ao instrumento. As aulas eram numa pequena capela no centro de Vila do Conde sendo estas as minhas aulas mais sólidas em contacto com o instrumento. Na altura na minha aldeia só havia a escola primária. Para se continuar os estudos tínhamos que ir para Vila do Conde. Eu achei que ia ser uma mudança muito difícil e exigir a minha atenção total nos estudos. Resolvi dizer aos meus pais que era melhor não continuar com as aulas na dona Esperancinha para dar toda atenção à escola. Mas na escola, a minha professora de educação musical (risos), percebeu que eu já tinha muitas noções sobre música e achou que eu devia investir nisso. Ela convenceu os meus pais para que eu fizesse exame de admissão ao conservatório… eu fiz isso. Felizmente nessa altura abriu a academia de música em vila do Conde e eu ingressei nessa academia com 11 anos começando assim os estudos musicais mais sérios à volta do piano.

RA: Ainda houve a hipótese de perdermos a Manuela artista para o Direito porque queria ser advogada, não é?
MA: Quando comecei a ficar com ideias mais concretas daquilo que gostaria de fazer para lá da música, também percebia que nunca iria ser uma pianista exímia e pensei noutra hipótese de profissão e o Direito parecia-me uma disciplina de saberes e interessante. Essa coisa de podermos, ou melhor tentarmos, regular a vida das pessoas em todas as dimensões que esta vida tem, como se regula os conflitos, como se consegue chegar a uma ideia de justiça… tudo isso para mim era muito interessante. Por outro lado, embora seja uma ideia errada, aquela coisa romântica que eu nos tribunais ia ser Perry Mason a defender os meus clientes com grandes argumentações (risos). Depois, claro que percebi que na vida prática não é bem assim tão linda como nos filmes americanos. Felizmente o rock roubou-me ao Direito. Eu acho que não tinha muitas qualidades para ser advogada e acho que ia ser uma experiência muito deprimente e cínica do que é andar a fazer música.

RA: Que recordações guardas do inicio dos Clã em 1992? O primeiro ano foi praticamente para apresentar a banda não foi?
MA: Sim. Eu aprendi uma boa lição com os Clã logo no início. É que tudo se faz com muito trabalho. Juntámo-nos no final de 1992, sendo o ano de 93 só para trabalhar, ensaiar, construir as canções e a preparar um espectáculo. Só no início de 1994 é que nos atrevemos a subir ao palco e mostrar o que tínhamos nas mãos. Depois foi trabalho normal das bandas da altura, fazer alguns concertos, levar maquetes às rádios, bater às portas das editoras (levar com algumas portas na cara) (risos), até encontrar alguém que se atrevesse a arriscar numa banda nova. Foi isso que a banda encontrou na EMI.

RA: No início houve uma espécie de crise. Quando sai o primeiro disco “LusoQUALQUERcoisa” passou muito bem na rádio mas, acabou por não vender muito e não render muitos concertos. Foram testes à resistência e determinação da banda?
MA: Sim, foi logo assim à cabeça. Acho que com o primeiro disco tivemos logo muitos testes. O primeiro de todos foi ter o disco pronto em setembro de 1995 e como a editora não tinha espaço editorial para o lançar teve que ficar 6 meses à espera de espaço. E não podíamos tocar nem nada, sendo mesmo uma primeira prova. E depois a coisa de ter um disco que é bem recebido pela crítica e pela rádio… mas não se fez muita estrada. Para nós é muito importante sentir como as canções se fazem em palco. E o que aconteceu é que no final desses primeiros tempos do disco “LusoQUALQUERcoisa”, falámos todos para decidir o que íamos fazer. Acabar com a banda ou continuar? A decisão, felizmente, foi de insistir porque gostávamos muito daquilo que estávamos a fazer. Tínhamos consciência da qualidade do nosso trabalho e queríamos experimentar mais e fazer mais coisas. Felizmente, estávamos todos na mesma onda e continuamos.

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Fotografia © João Octávio Peixoto

 

RA: O grande boom da banda foi no lançamento do disco “Kazoo”. Disco com temas muito importantes como “O Problema de Expressão” e “GTI (Gentle, Tall & Intelligent)”.
MA: Não direi que tenha sido um boom. Foi mais uma vez, um crescimento lento mas seguro. O disco quando saiu, passou um pouco despercebido e a reação da crítica não foi grande coisa aquando do seu lançamento. Mas depois começámos a tocar bastante e a trabalhar com uma agência do Porto, a Chave do Som, que trabalhou connosco durante muitos anos. Esse trabalho gradual e de fazermos concertos onde criávamos fama de fazermos bons espetáculos ao vivo, fazendo os programadores ficarem curiosos ao ponto de nos chamarem. Aos poucos fomos criando essa fama. Tivemos a sorte em 1998, como houve a Expo98, havia grandes palcos com grande visibilidade mediática. Todos esses concertos correram muito bem e com as canções a passar mais na rádio acabou por trazer à banda um reconhecimento muito grande. Até aqueles que não ligavam antes a nós e diziam que o disco não era nada de especial, agora já falavam das canções como grandes clássicos e por aí fora… (risos)

RA: Agora mais recentemente lançaram um novo álbum de originais que embora tenha sido composto antes desta pandemia, parece contar o que vivemos actualmente. O que é que existe dentro deste trabalho “Véspera”?
MA: Eu acho que a coincidência que acontece e que em alguns casos até é literal. Temas como o “Armário” que fala sobre uma pessoa estar fechada no seu armário, a asfixiar com falta de ar e a querer sair, é quase um retracto exacto daquilo que as pessoas estão a sentir por todo o mundo confinadas ao seu pequeno espaço. Mas eu acho que a razão dessa coincidência é que… embora esta pandemia seja um sintoma mais concreto dos males dos dias de hoje, há muitos males que já se vêm acumulandos e vão-se sentindo nos últimos tempos. Muitas coisas estranhas, a nível político, a nível social, económico, crises de refugiados, ideias racistas que começam outra vez a surgir, movimentos de extrema-direita que todos pensavam que já estavam enterrados definitivamente com aquilo que a história nos ensinou, mas pelos vistos parece que há ideias que se mantém. Tudo isso, quando uma pessoa começa a ver as notícias, acaba por criar uma sensação da história estar andar para trás. Essa sensação de ameaça, de uma coisa má que sentes que está sempre presente nos teus dias, acaba por dar esta sensação de que alguma coisa vai acontecer. Ou uma revolução (risos)… ou um cataclismo ou até uma revelação milagrosa. É esta sensação de véspera de estares nesse dia antes ou nesse momento antes de alguma coisa iminente e importante que nós vínhamos sentindo e que acabou por alimentar a construção das canções, mas depois também contaminando quem escreveu as letras. Por isso este disco acabou por ficar assim com este tom de por um lado de se sentir essa ameaça mas por outro lado sentir que a vida tem que continuar e tu resistires a essas ameaças.

RA: O disco tem muitas colaborações na escrita. Nomes com Sérgio Godinho, Samuel Úria, Capicua, Arnaldo Antunes, Carlos Tê, Regina Guimarães e Aurora Robalinho. Juntar estes nomes importantes foi importante para gravar este disco?
MA: Claro que foi. Na verdade desde o primeiro disco que estamos habituados a trabalhar com outros letristas. No primeiro disco foi mais com o Carlos Tê e outros nomes… por exemplo no Kazoo as letras são todas do Tê, mas desde o disco Lustro começámos a colecionar mais parceiros. Existe alguns que já trabalham connosco mesmo há muito tempo, porque sentimos que têm na escrita algo que faz sentido naquilo que procuramos na construção musical. Existe uma afinidade real, por isso as coisas acontecem. Quando tens uma música e precisas das palavras certas é fácil perceber a quem a vamos entregar… muitas vezes elas têm a cara do Sérgio Godinho, outras do Tê… outras por vezes nem sabemos a quem devemos entregar o tema. É nessa altura que acontecem convites pela primeira vez, como aconteceu neste disco novo. A Capicua é um exemplo. Nós já admirávamos o trabalho dela, não só como MC mas também a sua escrita para outros artistas. O Samuel Úria é outro exemplo. Isto também passa pela admiração mútua pelo trabalho autoral destes grandes artistas.

Paulo Perdiz

MDC Media Group

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