Oh não, outra discussão de Natal
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Oh não, outra discussão de Natal

Altas expectativas, velhos desaguisados que surgem com frequência, problemas recalcados que têm nos encontros pontuais um terreno fértil para emergir em força. A velha máxima de que a quadra natalícia é paz e harmonia pode ser bem traiçoeira.

Caso um: na família Silva, há muito há um elefante na sala. O ambiente nem é mau, no geral, mas há uma cunhada que as irmãs nunca viram com bons olhos. Durante o ano, com poucos encontros, a coisa flui sem dramas. Mas, no dia de Natal, conversa puxa conversa, lá vêm os assuntos melindrosos. E o bate-boca, invariavelmente, resvala para a discussão. O ambiente fica pesado. Por vezes, insuportável.

Caso dois: Edite, a matriarca, é louca pelo Natal desde sempre. Tanto que, para garantir que a festa corra bem, passa os dias anteriores à quadra (e as noites) a preparar tudo com afinco. No jantar de Natal, uma das filhas, inocentemente, constata que as couves estão mal cozidas. Edite não tolera a crítica. Responde com sete pedras na mão e ainda culpa todos pela ajuda que não deram. Com o passar dos anos, a pressão cansa. Há mesmo quem abdique de passar a consoada em casa de Edite e opte por ir celebrar com o outro lado da família.

Caso três: os Pereira não têm por hábito fazer grandes ajuntamentos familiares durante o ano. Mas, no Natal, dita a tradição, o clã junta-se à mesa. Manuel é doente pelo F. C. Porto. José pelo Benfica. São cunhados. A noite festiva é em casa de Manuel. Mas nem por isso José deixa de lançar as habituais provocações futebolísticas. Manuel avisa uma vez. José insiste. Segundo aviso. E o tema Benfica continua na mesa. Acabam-se os avisos. Manuel perde as estribeiras e pede a José que pegue na mulher e saia, para não haver mais discussão.

Os nomes são todos fictícios. Assim mandam os bons costumes e os pruridos. Assumir desaguisados familiares, ainda mais em época natalícia, extravasa os limites do que a sociedade impõe como moralmente correto. Já as situações são bem reais. Mas então o Natal não é, por tradição, uma quadra de família, paz e harmonia? Sim. E mesmo assim há casos em que a chegada da quadra, só por si, significa que há discussões a caminho? Também sim. Como? Ricardo Peixoto ajuda a explicar o fenómeno.

“Muitas vezes estas situações relacionam-se com a existência de desavenças anteriores. Não são conflitos existentes apenas na época de Natal. Depois, manda a tradição que no Natal se juntem as famílias. E quando se trata de juntar duas famílias diferentes, há um período de adaptação, em que é preciso procurar pontos de equilíbrio. Quando há pressões de parte a parte, aquela história do “tens de passar aqui, não, tens é de passar connosco”, cria-se um terreno fértil para discussão. E depois vão-se buscar outras coisas”, analisa o psicólogo.

Daí que o risco possa ser maior quando, no caso de um casal recém-formado, se juntam as famílias nas primeiras vezes. “Mas isto não é exclusivo do Natal. Há a transição para a conjugalidade, para a paternidade. Há sempre transições no ciclo de vida familiar e as mudanças são propícias a épocas de crise. Por natureza, podem gerar maiores níveis de conflito, não necessariamente disfuncionais”, acrescenta. Depois, há a questão de o Natal, pela carga simbólica que tem, poder potenciar os sentimentos de solidão e a vulnerabilidade. No fundo, o rastilho perfeito para que as discussões possam explodir.

“Não há estudos sobre o assunto. Mas é preciso considerar que, nesta quadra, há pessoas que têm mais tendência a sentir-se sozinhas. E para aqueles que já têm problemas relacionais, o Natal acaba por ter um grande impacto. A simbologia cultural tem um peso significativo sobre a dor”, considera Fabrizia Raguso, terapeuta familiar.
A trabalhar em Portugal há 18 anos, a italiana alerta para o perigo das generalizações (cada caso é um caso e o convívio e as motivações são sempre distintas) e recorda um episódio concreto, com que se deparou no exercício da profissão. “Em tempos, acompanhei um casal que decidiu separar-se definitivamente na altura do Natal. A crise já existia, devido a uma série de contingências e a separação consistiu, no fundo, em dar seguimento a um processo de tensão anterior. Às vezes, o Natal também pode trazer estas ruturas, enquanto atos simbólicos que dão ênfase a momentos de dor.”

Depois, há a questão das expectativas, as tais que a matriarca Edite põe nos píncaros todos os anos e que fazem com que reaja com azedume e indignação à mais pequena crítica. “É óbvio que, quando há uma expectativa exacerbada, é fácil gerar-se alguma insatisfação. Isso acontece sobretudo com pessoas muito perfecionistas”, destaca Ricardo Peixoto, apontando como fatores de risco um historial anterior de conflitos e o facto de o Natal poder ser um dos raros encontros familiares em todo o ano – como aconteceu com os Pereira, que acabaram de candeias às avessas por causa do futebol. Quem disse que o Natal era só paz e harmonia?

Evitar tensões? Pode não ser o melhor remédio

Para quem quer evitar a todo o custo a mínima discussão em contexto natalício, há conselhos óbvios que se podem dar: evitar temas fraturantes, suscetíveis de motivar conflitos, fazer por ignorar aquele sorriso sarcástico que não cai bem, reforçar o espírito conciliador. E até evitar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, visto que estas podem toldar o discernimento… e fazê-lo esquecer-se de todos os princípios anteriores.

Mas se acha que uma troca de ideias mais acesa é o pior que lhe pode acontecer no Natal, saiba que pode não ser bem assim. “Discutir não é necessariamente negativo. Pode ser uma oportunidade para resolver coisas antigas. É certo que não vai ao encontro daquela ideia tradicional do Natal que nós temos, mas pode trazer um momento de crescimento. Se evitar discussões significa não enfrentar, é melhor não evitar”, aconselha Fabrizia Raguso.
Ricardo Peixoto deixa outro alerta a ter em conta: “É importante que as pessoas se foquem mais nas relações. Idealmente, seria interessante que, no Natal, as relações saíssem reforçadas”.

Bruna SousaNM

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