Nas asas de um açor II
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Nas asas de um açor II

Nas asas de um açor II - revista Amar - Açores

Mais um dia despontava lá para os lados do porto, os autocarros despejavam os passageiros vindos dos arredores da cidade. O fluxo das gentes na baixa da cidade repete-se dia após dia, cada um ocupando o seu lugar na engrenagem de funcionamento desta urbe insular. Forrado o estômago numa esplanada na marginal, o sol já vai alto, hora de por o bólide na estrada a caminho das furnas. O itinerário escolhido junto à costa, a estrada EN1-A1 via estruturante nas deslocações pela ilha micaelense. Uma visita a S. Roque, Lagoa, Água de Pau, uma paragem mais demorada em Vila Franca do Campo. Avistar o ilhéu à distância, palco dos campeonatos de saltos para água, o Red Bull Cliff Diving. Um lugar paradisíaco onde as ondas do mar marulham de forma peculiar nos calhaus rolados durante séculos.

Link: https://youtu.be/JM2Dk8d37tg

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A parte da manhã tinha sido destinada a percorrer um trilho pedestre Praia – Lagoa do Fogo. A intenção esmoreceu a quando da consulta da informação precisa sobre o trilho, um percurso circular, grau de dificuldade médio, numa extensão de 11 km com a duração de 4 horas. Sem roupa e calçado adequado para caminhada, a sua extensão e duração fizeram o resto, a crónica de uma desistência anunciada. Cancelada a caminhada, a hora de almoço aproximava-se vertiginosamente a viagem prosseguia em direção à Lagoa das Furnas. Uma subida acentuada rivalizou com uma descida pronunciada atá à lagoa das Furnas, as árvores frondosas sombreavam a nossa passagem na estrada, um misto de alcatrão e empedrado.

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Lagoa das Furnas / Créditos © Carlos Cruchinho

 

Comprado o ingresso na lagoa, estacionado o veículo, ao longe avistei as primeiras fumarolas.

O raizame à flor da terra anunciava a elevada temperatura do chão por nós pisado nos percursos devidamente assinalados, onde a sinalética destacava a alta temperatura da água que brotava borbulhante do interior da terra. Rodeados de abruptas vertentes montanhosas, pude fruir da flora exuberante e da fauna abundante nas margens da lagoa. Uma visita rápida ao chão onde o cozido das furnas estava enterrado em lenta cozedura, cada buraco exibia a placa do restaurante ou casa de pasto associado. O nome Tony’s ficou–me na retina, um nome anglo-saxónico como estratégia de marketing de venda, apropriado nos Açores pelo enorme ligação das gentes do arquipélago ao continente norte americano.

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Povoação de Furnas / Créditos © Carlos Cruchinho

 

Já com um ratito no estômago, depressa chegamos às Furnas, o cheiro intenso a enxofre impregnava o ar, as ruas cheias de curiosos de telemóveis em punho, no registo desta sétima maravilha da natureza. À venda os bolos Levêdos das Furnas, uma breve explicação da doceira, um pacote transacionado para mais tarde, na hora do lanche alimentar a gula dos sabores.

Uma volta apeada pela vila proporcionou a descoberta de recantos encantadores, um extremo cuidado com a manutenção e arranjo dos espaços verdes, ruas imaculadas, sinalização objetiva. Antes da degustação do cozido das Furnas, uma espreitadela no Parque Terra Nostra e na poça da Dona Beija, locais incontornáveis a visitar nesta localidade.

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Igreja de Nossa Senhora da Alegria, Furnas / Créditos © Carlos Cruchinho

 

Já à mesa no Tony´s, após uma espera de 20’, uma simpatia de empregada tira o pedido sem perguntar o queremos, o nosso linguajar atraiçoou-nos, a maioria dos continentais só pedem o famoso cozido. A refeição foi acompanhado com um vinho branco maçanita verdelho original da Ilha do Pico, como sobremesa um pudim de maracujá. Saciado o corpo divinamente, num breve passeio antes de regressar à estrada, um momento de reflexão na Igreja de Nossa Senhora da Alegria, uma arquitetura simples.

Com enorme vontade de permanecer neste paraíso, à beira da lagoa das furnas fomos encontrar uma história de amor, a construção duma igreja por José do Canto, em consequência de um voto formulado pela doença de sua esposa. José do Canto (1820-1898) foi um homem rico, culto e amante da natureza. No seu testamento reza:
“Tendo feito, durante a maior gravidade da moléstia de minha esposa, em 1854, o voto de edificar uma pequena capela da invocação de Nossa Senhora das Vitórias, e não havendo realizado ainda o meu propósito por circunstâncias alheias à minha vontade, ordeno que se faça a dita edificação, no caso que ao tempo da minha morte não esteja feita, no sítio que havia escolhido, junto da Lagoa das Furnas, com aquela decência, e boa disposição em que eu, se vivo fora, a teria edificado.”

Situada na margem poente da Lagoa das Furnas, refletindo-se nas suas águas, é um impressionante exemplar do estilo neogótico, único em todo o arquipélago, onde se encontra sepultado este ilustre açoriano amante da natureza.

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Igreja Neogótica / Créditos © Carlos Cruchinho

 

No regresso a Ponta Delgada, o ocaso a poente apresentava os primeiros vestígios dum lento anoitecer, faltava avistar lá do alto a Lagoa do Fogo, o alfa e o ómega deste dia tão intenso. Numa corrida contra o tempo escalamos a vertente numa estrada sinuosa, uma última fotografia ao entardecer valeu o esforço.

O resto da noite foi preenchida com um repasto na Taberna do Açor, começando com uma Sopa de Peixe à Pescador (no Pão), uma tábua de queijos e enchidos e uma tigelada regional à sobremesa, excelente local onde completámos o cardápio das iguarias insulares.

Na última manhã em Ponta Delgada, uma derradeira espreitadela pela baixa da cidade, por ruelas paralelas e perpendiculares ao porto. Avistado o forte e ladeada a estátua do ilustre Teófilo de Braga, uma visita às igrejas requintadamente decoradas com a talha dourada e arte sacra. Uma assume um particular destaque, a igreja e o convento da Esperança.

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Igreja da Esperança / Créditos © Carlos Cruchinho

 

Ambos datam do século XVI, tendo sofrido alterações nos séculos posteriores, albergando a famosa imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, apresentando um fabuloso conjunto de adereços em ouro e pedras preciosas do século XVIII, e associado à maior festividade da cidade. A Igreja apresenta um rico interior, profusamente decorado de talha dourada, pinturas de Manuel Pinheiro Moreira e azulejaria do século XVIII e outra mais recente. O Convento da Esperança é também conhecido por ter sido no muro exterior da sua cerca, num banco de jardim assinalado por uma âncora, que em 1891 se suicidou o poeta Antero de Quental.

Como despedida deixo um excerto do primeiro capítulo do livro Gente Feliz com Lágrimas do escritor açoriano João de Melo. Uma singela homenagem a toda diáspora das gentes dos Açores, espalhada pelo mundo e em particular no Canadá e Estados Unidos da América que um dia tiveram que partir.

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Convento da Esperança / Créditos © Carlos Cruchinho

 

“Quando largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto de muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar. Depois um e outro viram a Ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se aos poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens.”

Carlos Cruchinho

Licenciado no ensino da História e Ciências Sociais

 


Pode encontrar o artigo “Nas asas de um açor I” de Carlos Cruchinho aqui

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