Nas asas de um açor I
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Nas asas de um açor I

As viagens são sempre um bom remédio para confirmar in loco as nossas expectativas em relação a um determinado lugar, vivenciar na primeira pessoa experiências únicas, os usos e costumes locais, a gastronomia cativante, o linguajar com sotaque, a hospitalidade dos naturais, o clima muito peculiar e as paisagens bucólicas, vendidas nos anúncios promocionais da televisão. Ao abordar os arquipélagos nas minhas aulas, habituei os alunos com os lugares comuns, relativamente aos Açores ou Azores, a enumeração das ilhas do grupo oriental, central e ocidental.

A toponímia do nome dado às ilhas, a caracterização do clima, o seu relevo, as atividades económicas, a sua localização e a distância em relação a Portugal Continental. Um manancial de informações disponível em qualquer guia turístico bilingue comprado numa grande superfície ou loja da especialidade. Seguramente um retrato minimalista e românico.

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Ilhéu de Vila Franca, São Miguel, Açores

 

O seu descobrimento é uma das questões mais controversas da história da navegação portuguesa do século XV. O que se sabe concretamente é que Gonçalo Velho chegou à ilha de Santa Maria em 1431, decorrendo nos anos seguintes o (re)descobrimento – ou reconhecimento – das restantes ilhas do arquipélago dos Açores, no sentido de progressão de leste para oeste. Uma carta do Infante D. Henrique, datada de 2 de julho de 1439, ao seu irmão D. Pedro, é a primeira referência segura sobre a exploração do arquipélago. Só mais tarde Diogo de Teive terá chegado ao grupo ocidental, às ilhas das Flores e do Corvo.

Essas ilhas encantadas incutem um fascínio irresistível nos seus potenciais visitantes, uma espécie de atração fatal incurável, alimentado por um desejo incontrolável de voltar a embebedar-se de natureza. O escritor Raul Brandão descreveu-as como ninguém na sua obra Ilhas Desconhecidas – notas e paisagens. Dizia ele numa nota introdutória da obra, em três linhas “Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha… Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!…”

Após duas horas e dez minutos de voo acabara de desembarcar no aeroporto João Paulo II. No rent car aguardava-nos um Fiat 500 companheiro de viagem durante os três dias de estadia. Uma apreensão apoderou-se dos meus pensamentos, como ser pragmático para rentabilizar o tempo, com intuito de visitar todos os pontos de interesse da ilha. Na breve lista previamente escrita sobravam lugares e escasseava horas, manhãs, tardes e dias para tamanha empreitada. Um enorme defeito dos turistas apressados, nos Açores apreendi que o tempo tem um evoluir próprio, inversamente proporcional aos batimentos cardíacos a quando fruição da natureza no seu estado mais puro e luxuriante.

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Portas da cidade Créditos: Carlos Cruchinho

 

Com este artigo pretendo que vejam pelos meus olhos a ilha de S. Miguel, entrando simbolicamente pelas portas da cidade de Ponta Delgada, percorrendo as ruas e vielas atapetadas a preto e branco, exibindo autênticas obras de arte em calçada portuguesa. Enxugar a roupa no corpo depois de uma borrasca momentânea, entrar a escorrer água no primeiro sítio para se acoitar do clima peculiar da ilha, no restaurante Camões degustar a primeira refeição em solo açoriano. Antes de fazer check-in no Neat Hotel Avenida, uma promenade pela marina de Ponta Delgada, uma doca disponível para barcos da marinha mercante, cruzeiros e fragatas da marinha portuguesa. O escritor Raul Brandão descrevia a sua chegada no S. Miguel a Ponta Delgada numa prosa poética inigualável a quando do deu périplo pelas ilhas açorianas.

“À tarde, pelas sete horas, temos outra ilha à vista, sob grossas nuvens amontoadas, tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um pôr do Sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Mas o que me interessa é a luz que mudou, é o céu que mudou – a luz delicada dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e forrado de nuvens que um pintor imitaria na tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à linha do horizonte. E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz… Ilumina S. Miguel (13 de junho), coada pelo céu pardo, e Ponta Delgada estendida à beira da doca, com um grande monte violeta ao lado.“

Repostas as energias despendidas na longa viagem da véspera, acordo para mais um dia no paraíso, estranho a hora no meu relógio, afinal ganhei mais uma hora, oito horas em Portugal Continental, menos uma hora nos Açores. A luz a refletir nas águas da baia de S. Pedro entra sem piedade pela vidraça do hotel, o tempo adormece, uma espécie de calma apodera-se dos meus sentidos. Acomodado o estômago com uma sandes mista em pão de sementes e uma meia de leite na Casa Cheia, próximo destino Lagoa do Canário na Serra da Devassa, localizada na formação vulcânica do maciço das Sete Cidades. Aos poucos vamos deixando o buliço de Ponta Delgada, como companhia o serpentear do betuminoso como uma fita métrica desenrolada numa imensidão de verde, as bermas engalanadas de hortênsias também conhecidas por “novelões”, a paleta de cores pode variar conforme a acidez do solo, hortênsias azuis, rosas, lilás, vermelhas e brancas. Ao chegar ao estacionamento em saibro, o nevoeiro espesso esconde a paisagem, avisto uma manada de vacas leiteiras no pasto. As primeiras fotos tiradas com o telemóvel.

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Vale encantado Créditos © Carlos Cruchinho

 

Desço à procura da lagoa, o silêncio sepulcral da caldeira rodeada de floresta autóctone deliciam o meu imaginário, a harmonia da natureza em estado puro, os peixes assomam nas margens sem medo aparente da presença humana. Entre as ramagens avisto um pássaro numa pastagem adjacente, filmo o seu passeio a saltitar entre uma bicada e um rodar de cabeça para vislumbrar alguma ameaça. – (https://youtu.be/azDAtk6SlIw)

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Lagoa do Canário Créditos © Carlos Cruchinho

A próxima paragem a Lagoa das Sete Cidades com a sua ponte a separar as águas azuis e esmeralda, o expoente máximo do bilhete postal dos Açores, um lugar deslumbrante com os seus miradouros únicos, permitindo a selfie perfeita para posterior post nas redes sociais.

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Lagoa das Sete Cidades Créditos © Carlos Cruchinho

 

Uma descida vertiginosa às margens da lagoa, cruzo com os lavradores de galochas tocando as vacas no meio da estrada, uma espécie de transumância entre pastagens. Aceno em modo cortesia, recebo de volta um levantar de braço, paro mais à frente para mais fotografias, o ritual repete-se até à Ponta da Ferraria. Antes da descida a pique, recolho alguns vestígios vulcânicos de recordação junto ao muro construído com basalto vulcânico, um património imortalizado por Pedro Laranjinha em documentário, uma coprodução Alice’s House e Museu Carlos Machado.

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Ponta da Ferraria Créditos © Carlos Cruchinho

Os acidentes rochosos fazem lembrar os tempos imemoriais em que torrentes de lava desaguavam nas águas frias do atlântico edificando uma linha de costa recortada, onde as reentrâncias formam uns minúsculos fiordes magmáticos. Após milénios de confronto com o oceano cristalino, as arribas tentaculares não recuaram um milímetro nessa refrega. No regresso avisto o farol (Ferraria) com as bandeiras desfraldadas ao vento, o açor esvoaça ao sabor da maresia salgada. Olhando o mar, uma refeição frugal, uns snacks e uma peça de fruta. Nada de desperdiçar o precioso tempo de visita sentados à mesa, a Ribeira Grande esperava uma visita, o posto de vigia Wales Watch num ponto estratégico da ilha, uma atração turística sustentável, um sucedâneo da arcaica pesca ao cachalote. Os cetáceos são avistados a partir de terra pelo vigia, que fornece a informação da sua localização através de rádio VHF para as embarcações, que de seguida se dirigem para o local do avistamento. Em pleno outono, um clima ameno convidava a roupas leves, o céu exibia um cinza policromático, sentia-me um pouco gaulês, a qualquer momento o céu poderia desabar sobre a minha cabeça. Estacionado o Fiat 500, decidido a visitar a fábrica de chá Porto Formoso, uma borrasca anuncia-se, apressadamente procuro abrigo no alpendre com vista para a plantação. Deleito-me com a paisagem, enquanto chove com intensidade durante 15 minutos. Sentado numa mesa feita com rodelas de madeira de troncos centenários, aguardo a bonança, contando os anos da árvore sacrificada. A visita guiada ao museu e a fábrica terminou numa degustação do Azores Home Blend, o primeiro chá do ano – contém todas as folhas do rebento da Camellia Sinensis.

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Chá no Porto Formoso Créditos © Carlos Cruchinho

 

As duas únicas plantações de chá da Europa para fins industriais tem como marcas reconhecidas pelos consumidores Gorreana desde 1883 e Porto Formoso desde os anos vinte do século passado.

A tarde caia a poente, o mar agitado no porto de abrigo em Rabo de Peixe, as ruas fervilhavam de gente, entre miúdos e graúdos. Uma volta pela vila piscatória, os bairros apinhados de pescadores à espera do bom tempo para a faina, magro sustento para tantas bocas famintas. No porto de pesca observo uma família a cuidar da sua casca de nós, os petizes aprendem o ofício enfrentando o mar de frente, como diz o povo de pequenino se torce o pepino. Abraçar desde tenra idade um destino incontornável, a faina piscatória ao largo. Uma bebida fresca na roulotte Peter’s Bar em pleno coração de Rabo de Peixe, um lugar açoriano genuíno fora dos roteiros turísticos habituais.

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Porto de Rabo de Peixe Créditos © Carlos Cruchinho

 

Com a hora de jantar aproximar-se, na Ribeira Grande ainda sem recomendação para o repasto, uma sugestão trazida do continente levou-nos ao Restaurante da Associação Agrícola de S. Miguel, uma agradável surpresa para o palato e restantes sentidos. A escolha recaiu num hambúrguer à “Associação”, 350g de carne de vitela açoreana flamejada em vinho branco, com alho e pimenta salgada, acompanhado de batatas fritas e dois ovos. Com uma garrafeira eclética, a escolha do vinho revelou-se uma excelente aposta, Indelével Vinho Tinto Vegan. Como sobremesa um pudim de chá acompanhado de café longo. Um fim de dia num lugar requintado rodeado de bom gosto, um serviço rápido e eficiente. O regresso ao hotel fez-se com alguma parcimónia, após a degustação, o corpo pedia um passeio à beira mar, a marina de Ponta Delgada o sítio adequado para essa finalidade.

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Sé de Ponta Delgada Créditos © Carlos Cruchinho

 

A caminho do hotel mais uma olhadela na igreja de São Sebastião, um dos ex-libris da cidade com os seus pórticos manuelinos e barrocos, a talha dourada que reveste as suas naves, capelas e altares. Em plena praça, vogando como uma sombra sou abordado por alguém de chapéu na mão, em surdina um pedido de algo para comer.

Carlos Cruchinho

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