Page 8 - Revista Amat - Edição Online - Fevereiro 2016
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Pedro
e Inês...
Imagens: Freepik OSuper, a Florista, a Papelaria, nhado de túlipas, pela ocasião, por ser dia dos namorados. Ela
os Correios. Tudo pintalgado riu e disse-lhe que nunca antes ele lhe parecera tão piroso!
de vermelho, cartões lame- Visto à distância de uns 5 anos, ainda lhe parece mais piroso.
chas, corações no ar a fusti- Na cama, ainda dorme do seu lado, sem invadir o espaço vazio
gar-lhe os olhos e a violentar- do corpo que dorme agora com outra. A perda de alguém que
-lhe o espaço entre a razão e a ditadura do dia dos Namorados. escolhe partir; e no entanto, caminha nas mesmas ruas, conti-
O marido deixara-a por outra, mesmo às vésperas do malfa- nua a beber a bica no mesmo café, povoa-lhe o caminho, vive
dado dia, faz um ano. O maior amigo dos últimos 28 anos, o ainda dentro dela, é devastadora.
único amante que passou pelo seu corpo, o pai do filho que As noites são imensas, o diabo anda à solta e há fantasmas que
abdicou de ver nascer, porque ele não a queria ocupada com ainda não se finaram. Revolve-se nos lençóis, acende a luz, re-
mais ninguém. começa um livro pela terceira vez. Desliga o interruptor. As-
Ainda sem divórcio à vista, já um novo Fevereiro vem chegan- senta os pés gelados, porque agora estão sempre gelados, na
do, e ela de ferida dilacerada, com as lágrimas feitas de sal a carpete do quarto. O dia começa quando ainda não acabou.
cairem-lhe lá dentro, bem no âmago do poço. Modernices! – Deambula até à cozinha. Passa pela consola da entrada; há
pensa, ao pousar a mão esquerda sobre uma revista com suges- duas cartas com o nome dele, como se a ironia da burocracia
tões para o dia mais romântico do ano; ainda de dedo ocupado pudesse tornar o fardo mais carregado. Abre a janela, falta-lhe
por uma aliança que já se quebrou e de um ciclo de rotinas que o ar. Falta-lhe a força nas pernas. Senta-se no chão da sala, com
já não existem. Modernices! – como o maldito Facebook que as pernas nuas. Ao acaso, abre um album de fotografias, des-
só lhe trouxe inferno e lhe levou a paz. Aquele nome a explo- folha-o. Tudo lhe parece já tão distante. Fotos no casamento
dir-lhe as têmporas - Ana Maria Corte-Real – nobreza nojenta de alguém, que já está também noutras núpcias. Todos encar-
e bem casada, com um figurão, jurista, presença assídua dos cerados dentro das páginas. Só as fotografias têm o poder de
programas da TV, das manhãs... prender as pessoas para a posterioridade. Olhares que já não
Ele telefona-lhe por vezes, para lhe pedir livros, documentos, existem. Olhou-se ao espelho por cima da lareira, levou a mão
roupa que lhe faz falta, albuns de fotografias de viagens que à cara e deu-se conta que os seus olhos tinham envelhecido
fizeram juntos. Liga-lhe a horas seguras, em que sabe de an- duramente no espaço de um ano. Nessa noite, mais uma bran-
temão que ela não desconversa, porque a sabe aprisionada no co, fez um pacto com a sua maturidade. Seria a última noite
metro apinhado de gente. Ao dia combinado, ele lá aparece que permitiria que a sua baixa auto-estima se pudesse passear
à ombreira da porta, como se fosse um estranho. Quando lhe como se uma aparição.
diz que não tenha ilusões e a porta se fecha, sente-se acometi- Na manhã seguinte, em vez que levar o mesmo itenerário, de-
da, como se para além de lhe assaltarem a casa, lhe roubassem cidiu fazer o caminho a pé até à redacção. Comprou um par de
também a alma. O corpo esvaí-se por alí fora, pelo tapete, e luvas, ao passar pela Ulisses, à hora do almoço. Vermelhas! No
arrasta-se em lágrimas até à janela para ainda o ver, agora ao caminho de regresso a casa, passou pela advogada com instru-
longe – ainda lhe guarda o cheiro, a maresia dos cabelos de ções para que iniciasse o processo de divórcio.
um dia de praia, a covinha no queixo que sempre mexeu com Como tinha dado carta de alforria à baixa auto-estima, sentiu
ela, os mesmos pés apressado que chegavam sem avisar, para algum receio que ao regressar a casa, a encontrasse no tape-
roubar beijos e tardes de cama. te da entrada, na poltrona da sala, numa qualquer notícia de
O dia dos Namorados caíu bem entre os adolescentes, o co- abertura do notíciario, num dos ansiolíticos ainda em liberda-
mercio rejubila, só isso. Entre eles, que eram eternos namora- de no armário de casa-de-banho... Passou por um desses ca-
dos, passava em branco. Chega-lhe à memória um longínquo beleireiros novos em bairro velho, entrou. Sentiu-se segura lá
fim-de-semana em Amesterdão, onde se passeavam por entre dentro. Precisava de voltar a ser nova – não mais jovem; apenas
os jardins labirínticos de Keukenhof, e ele lhe ofereceu um pu- outra mulher – pois se era assim que iria ser, precisava de ver
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